Aline Calixto propõe a emancipação feminina em ‘Meu Ziriguidum’

19/03/2018 00:00 / Atualizado em 09/05/2019 15:38

Não é de hoje que as mulheres bradam na música brasileira. O clamor pela igualdade de gênero e contra práticas abusivas contra as mulheres vem de tempos remotos até os mais atuais. Em verso e prosa, a cantora Aline Calixto também contestou, em seu disco “Meu Ziriguidum”, o 3º na carreira da cantora, as obrigações que a cultura machista insiste legar às mulheres.

“Eu busquei levar para o CD as coisas que eu vivo e sinto, desde as questões feministas e as temáticas de amor até as abordagens do universo afro-religioso”, revela Aline em entrevista exclusiva ao Samba em Rede.

Nascida no Rio mas radicada em Minas Gerais desde criança, Aline é uma representante da nova geração do samba
Nascida no Rio mas radicada em Minas Gerais desde criança, Aline é uma representante da nova geração do samba

Com 11 faixas inéditas e participações especiais de Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e do rapper Emicida, o trabalho tem produção musical de Paulão 7 Cordas e Thiago Delegado. No repertório, composições de autores consagrados como Arlindo Cruz, Moacyr Luz, Serginho Beagá e novos nomes como Rogê, João Martins e Leandro Fregonese, além da canção que dá nome ao disco, “Meu Ziriguidum”, escrita por Aline e pelo compositor Gabriel Moura.

Algumas das canções escolhidas por Calixto colocam as causas feministas e a intolerância religiosa em pauta e expõem a complexidade do preconceito enraizado na cultura brasileira. “Não podemos nos curvar a esses padrões de beleza e comportamento impostos pela sociedade que vivemos”, e aponta Dona Ivone Lara e Beth Carvalho como “duas mulheres que lutaram para chegar onde chegaram.”

Escute o álbum “Meu Ziriguidum”: 

Confira a entrevista completa concedida ao Samba em Rede por telefone:

O que você experimentou de diferente nesse período que puxou o conceito de “Meu Ziriguidum”?

Eu continuo com a minha história que é o samba. O que o “Meu Ziriguidum” traz de diferente é meu envolvimento no projeto do início ao fim.  Participei ativamente em todas as etapas da produção desse CD e isso tem um gosto diferente.

Pensei muito no conceito do disco. Eu busquei levar para o CD as coisas que eu vivo e sinto, desde as questões feministas e as temáticas de amor até as abordagens do universo afro-religioso; a primeira música, que dá nome ao disco – “Meu Ziriguidum” -, que assinei junto ao Gabriel Moura, fala sobre o que vivo no meu cotidiano. O “Meu Ziriguidum” tem tudo a ver comigo.

No trabalho nota-se uma mescla de compositores consagrados como Arlindo Cruz, Moacyr Luz, Serginho Beagá e novos nomes como Rogê, João Martins e Leandro Fregonese, além de obras autorais. Como se deu o processo de composição e pesquisa de repertório para as regravações?

O meu processo de composição é algo bem prático. Eu faço as minhas músicas e, se eu acho que elas se encaixam no projeto, eu coloco. Foi assim no primeiro e no segundo disco. Não tenho restrições com trabalhos piamente autorais, eu sou uma intérprete acima de tudo. Quero dar vida às composições e interpretá-las de todas as formas, com a voz, corpo e com a vida.

Com os compositores é a mesma coisa, independente se eles são mais conhecidos ou menos conhecidos, eu procuro fechar um repertório que tenha a ver com o conceito do disco. Acho importante ter nomes mais renomados, mas também exaltar nomes da nova geração, não teria motivo para não tê-los comigo.

O disco conta com as participações de Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Emicida. Como foi interpretar ao lado destes ícones?

Nossa, todos são pessoas muito especiais desde quando os conheci. O Arlindo é meu parceirão desde o primeiro disco, é uma referência para todos. Além de ser um dos grandes nomes da cena contemporânea do samba. Tenho muita honra e felicidade em tê-lo como amigo.

O Zeca é meu parceiro desde o segundo disco. Agora no terceiro, ele me ajudou muito, conversamos muito sobre como interpretar diferentes vertentes do samba, além cantar comigo.

O Emicida é um cara que eu admiro muito. Ele vem desempenhando um papel fundamental na música brasileira, ele é muito bom nas coisas que ele se propõe a fazer, suas críticas têm fundamento, e isso faz com que as pessoas comecem a pensar mais sobre injustiças, intolerância e o preconceito.

Foi maravilhoso ter os meus amigos participando do meu trabalho.

Uma das canções que você regravou foi “Conto de Areia”, de Toninho Nascimento e Romildo, e consagrada na voz de Clara Nunes, ao lado do rapper Emicida. Como foi transitar por diferentes gêneros da música popular?

Foi legal demais! Ele curtiu a ideia de homenagear a Clara Nunes, já tínhamos feito algumas coisas juntos, então tudo aconteceu de uma forma bem natural e bacana. Eu só tenho a agradecer por ele ter topado esse convite.

Em 2012, você se apresentou o show “Aline Calixto canta Clara Nunes”, um repertório que estabelece um diálogo com a religiosidade, contemplando a mitologia do sincretismo. Neste trabalho você também incorpora essa temática. Qual é o seu parecer sobre a intolerância religiosa no Brasil?

Acho isso tão triste porque não cabe: somos teoricamente seres humanos civilizados, mas infelizmente alguns da nossa espécie não agem como tal. Preconceito e intolerância são incabíveis.

Eu, enquanto artista, vou sempre cantar o que eu acredito, o que é verdadeiro, o que eu amo. E as questões religiosas que eu escolho cantar andam lado a lado com o samba. Virar as costas ou não cantar esse tema significaria uma negligência com o gênero. Eu sou totalmente contra qualquer tipo de preconceito, seja de gênero ou religioso.

A presença feminina foi e é fundamental para o seu desenvolvimento, manutenção e perpetuação do samba até os dias de hoje. De que maneira as músicas “Meu Ziriguidum”, “Musas” e “Eu Sou Assim” exemplificam o protagonismo feminino?

Eu quero passar a imagem da mulher que todas nós deveríamos ser: sem rótulo e sem esteriótipo.

Não podemos nos curvar a esses padrões de beleza e comportamento impostos pela sociedade que vivemos. Precisamos exigir respeito, ditar as regras para os nossos corpos e para as nossas vidas. Falo muito sobre isso no meu disco, como na música “Meu Ziriguidum”, na qual eu vou me encaminhando pra onde eu quiser e, no meu caso, eu vou pro samba porque lá é que eu me encontro.

Quais são as suas principais referências?

Dona Ivone Lara e Beth Carvalho. Duas mulheres que lutaram para chegar onde chegaram. O samba foi sempre cercado de muito preconceito de gênero, as mulheres sempre ocuparam um papel coadjuvante. Dentro das rodas de samba era muito difícil ver uma mulher tocando um instrumento ou até mesmo cantando, geralmente ela se configurava no coro ou pilotando as comidas na cozinha.

Dona Ivone Lara é o maior exemplo de mulheres que compunham. Ela foi campeã com sambas-enredos mas no início não podia assinar suas composições tamanho o preconceito com as mulheres nesses ambientes. Isso vem mudando mas não podemos nos silenciar.

Qual é a música deste disco que mais emociona? Por quê?

Ai, não (risos)! São músicas muito diferentes. Tem “Toda Noite” que canto junto com o Arlindo, que é muito especial e romântica; tem também a faixa “Meu Ziriguidum”, que apresenta uma temática muito forte, abre o disco e defende posições que eu acredito. Muito difícil escolher uma só!

Em 2007, você venceu o concurso “Novos Bambas do Velho Samba”, no Carioca da Gema. Desde então já lançou três discos e cantou nos projetos Sambabook Martinho da Vila e Dona Ivone Lara. De que modo você e sua música se transformaram ao longo desses anos?

Experiência. Todo começo é desafiador e difícil no sentido de entender qual é o seu lugar, o seu espaço nessa história. Essa percepção só é alcançada com erros e acertos. Tenho uma bagagem que me satisfaz bastante, no entanto, a busca por uma ampliação de conhecimentos e novas vivências musicais nunca para.

Percebo que minhas decisões hoje são mais precisas. Sei por onde eu devo e quero andar.

Como tem sido a resposta do público desde o lançamento do disco? E você já está pensando em novos projetos?

Meu público é bonito demais, gente! Quem gosta do meu trabalho, gosta porque entende. É uma galera que compartilha das bandeiras que eu levanto, elogiam bastante a minha forma de interpretar. O retorno está sendo muito positivo!

Bom, tem vários projetos pintando. Já tem um novo CD sendo articulado para o ano que vem, além de muitas surpresas no caminho!

  • Para celebrar o Mês da Mulher, o Samba em Rede presta homenagens diárias a personagens do gênero feminino que nos inspiram. Saiba mais sobre a campanha e leia outros perfis aqui.