A inspiração de Maragojipe que ganhou a voz de Clara Nunes
Em Maragojipe, no Recôncavo baiano, nasceu e desenvolveu-se um pedaço importante da história do samba e da cultura brasileira. Ali brotaram versos como “veio de um povo sofrido/ de rara beleza/ que vive cantando/ profunda grandeza”, de autoria do compositor baiano Edil Pacheco para a canção “Ijexá”, imortalizada na voz de Clara Nunes.
A história desta composição surge pelos idos de 1981: durante uma passagem pela Avenida Vasco da Gama, em Salvador, o músico se deparou com as palavras “Afoxé Otum Obá” escritas em um muro qualquer. A partir deste episódio, Edil, que já era familiarizado com o tema, decide aprofundar uma pesquisa identificando e mapeando os blocos afros de afoxé da Bahia.
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Um dos mais representativos é o Afoxé Filhos de Gandhy, criado em 1949 por estivadores do Porto de Salvador. Na primeira vez que desfilou, apesar de mais de uma centena de inscritos, apenas 36 participantes saíram às ruas com medo da repressão policial.
O acúmulo de informações e o desejo de evitar equívocos em torno da diferença entre os termos afoxé e ijexá, frequentemente confundidos pelo público, resultaram na composição da canção “Ijexá”. “O afoxé significa candomblé de rua, levar para a folia os rituais dos terreiros; o ijexá é essencialmente um ritmo que se toca, por exemplo, em um chamamento para Oxum”, esclarece Edil, em entrevista exclusiva concedida ao Samba em Rede.
Concluída a primeira e a última partes da canção, Pacheco faz questão de contar que recebeu ajuda de sua companheira, Ana Maria, para terminar a composição. “Era uma daquelas noites mágicas de Maragojipe, acordei Ana e pedi ajuda. Ela levantou e rapidamente pegou um papel e escreveu os versos ‘veio de um povo sofrido/ de rara beleza/ que vive cantando/ profunda grandeza’.”
Pela manhã, na hora do café, Edil pegou o violão e os versos encaixaram-se direitinho na melodia. Segundo ele, a “patroa” até hoje brinca dizendo que o nome dela também tinha que ter entrado na parceria.
Em 1982, o músico faz uma viagem ao Rio de Janeiro para celebrar o aniversário do amigo João Nogueira. Ao lado de músicos como Paulo César Pinheiro, o baiano participou da festa que aconteceu no antológico Clube do Samba, quando ainda era localizado no Méier. Segundo relatos, as festividades começavam sempre no fim da tarde e iam até o raiar do sol.
“Sei que aquele violão rodou e rodou até que chegou na minha mão e eu cantei o ‘Ijexá'”, conta Edil. A composição recente chamou a atenção de todos, mas em especial a de Clara Nunes, que estava em fase de preparação do seu próximo álbum, “Nação”.
“Eu ainda estava cantarolando alguma canção e ela me interrompeu, pedindo que eu cantasse aquela do aniversário do João”, recorda. “Pode não, deve”, foi a réplica de Edil quando Clara perguntou se poderia incluir a canção em seu novo trabalho.
No entanto, essa parceira é mais antiga. Em 1979, Clara Nunes grava “Apenas um Adeus”, uma parceria de Edil com Roque Ferreira e Paulo Vinícius, e “Coração Valente”, parceria com Roque, feitos que contribuíram para lançar Edil ao grande público e fizeram com que a parceria intérprete-compositor seguisse nos discos seguintes de Clara.
Edil e Clara se conheceram durante uma das viagens da intérprete à Bahia. “Eu estava no Mercado Modelo ouvindo a Rádio Excelsior e percebi que ela [Clara Nunes] estava dando uma entrevista ao vivo. Não perdi tempo, fui até lá entregar o meu primeiro LP ‘Pedras Afiadas’ a ela”, relembra Edil. O encontro se deu no edifício que sediava a rádio, em Salvador, muito frequentado por músicos e representantes da classe artística emergente da década de 1970.
A ligação dos dois só se consolida anos mais tarde, quando Edil faz uma viagem ao Rio de Janeiro e decide visitá-la. Foi quando outra grande parceria começou a tomar forma no campo da música brasileira, com Paulo César Pinheiro, marido de Clara.
Em 1988, a fértil parceria resultou, entre outros projetos, no álbum “Afros e Afoxés da Bahia”. O repertório selecionado revelou obras como “Ara-Kêto (Povo do Kêto)”, “Oju Obá” e “Oludum”, interpretadas por Paulinho Araketo , Gilberto Gil e Margareth Menezes, respectivamente.
Mais sobre Edil
Nascido em 1945, em Maragojipe, cidade situada no Recôncavo baiano, o compositor é considerado um dos pilares do samba baiano junto com Batatinha, Riachão e Roque Ferreira.
Conviveu em sua adolescência com as manifestações autênticas da música baiana, que fazem parte da memória que ele coloca em suas letras e melodias. Mudou-se para Salvador aos 19 anos para trabalhar e estudar. Acabou estreitando laços com o sambista Batatinha que, em 1967, o convida para acompanhar o show “Eu Sou, Tu És, Ele É: Gente”.
Por essa época começou a desenvolver a atividade de compositor, incrementada a partir do ano seguinte com sua participação no grupo Função. Sua primeira composição gravada foi “Fim de Tarde”, com Luiz Galvão, em 1969, na voz de Eliana Pitman.
Foi no início de 1970, escorado no sucesso de sua música “Alô Madrugada”, parceria com Ederaldo Gentil e famosa pela interpretação de Jair Rodrigues, que Edil muda para o Rio de Janeiro tornando-se uma importante referência do samba baiano. Outras músicas conhecidas foram “Siriê”, gravada por Fafá de Belém em 1975, e “Dengo”, eternizada por Luiz Caldas.
O baiano segue ativo compondo, gravando discos, realizando shows e sempre em busca da valorização dos talentos de sua terra como articulador cultural. Edil foi responsável pela consolidação do evento “Dia do Samba” na Bahia, no qual homenageia vários compositores e intérpretes do gênero desde 1987.
Antes ou depois de “Ijexá”, a obra de Edil Pacheco é documento valioso do solo em que foi concebida. A identificação com o gênero e a capacidade de criar o credenciam como exímio compositor do samba que é. “O samba é a célula mais forte, em termos de conteúdo, da música popular brasileira”, defende.
Na entrevista, o músico ainda expõe sua opinião em torno do posicionamento do samba às margens da mídia: “O Wilson Moreira, por exemplo, é um compositor fantástico, canta de uma forma maravilhosa, mas é pouco divulgado”. No entanto, fala em tom sutil de esperança: “O cara que faz esse tipo de música, é a própria história e é quem dá suporte para essa turma que tá chegando.”