Moisés da Rocha e o novo formato de ‘O Samba Pede Passagem’

01/07/2016 00:00 / Atualizado em 09/05/2019 15:38

“A minha existência toda é musical”, afirma Moisés
“A minha existência toda é musical”, afirma Moisés

Lançado em 1978 e até hoje apresentado pelo produtor, pesquisador e radialista Moisés da Rocha, o programa “O Samba Pede Passagem”, da Rádio USP FM, é um marco do rádio paulista.

O radialista dedica-se à música brasileira e às notícias das comunidades periféricas que desenvolvem projetos voltados à cultura popular. Preservando as raízes culturais afro-brasileiras, ele dá espaço aos compositores desconhecidos e resgata a obra de autores consagrados.

Recentemente, a notícia de que o programa seria cancelado gerou grande comoção por parte dos internautas nas redes sociais. O caso ganhou repercussão e, em entrevista concedida ao Samba em Rede, o radialista afirma não ter sido a primeira vez que a carga horária do programa sofre alterações: “O programa começou junto a fundação da rádio USP em 1978. Foi o primeiro programa de rádio no Brasil a dedicar-se exclusivamente ao samba e, no início, a transmissão era diária”, afirma.

Flyer utilizado na campanha pela permanência do programa
Flyer utilizado na campanha pela permanência do programa

Correndo o risco de perder seu espaço, o requerimento pela permanência do programa chamou a atenção, inclusive, dos poderes públicos: “A deputada Leci Brandão entrou também em defesa do samba questionando o porquê da USP estar diminuindo o espaço do samba.”

A reitoria chegou à conclusão que uma mudança era necessária. Desde o dia 5 de junho, o programa voltou a ser exibido aos domingos e a segunda hora do programa passou a ser dedicada ao choro no quadro “O Samba Pede Passagem em Tempo de Choro”, das 13h às 14h.

Além disso, Moisés da Rocha faz pequenas entradas em comemoração ao centenário do samba ao longo das transmissões diárias da rádio.

Confira a entrevista na íntegra:

A polêmica na internet gerou uma grande comoção e apoio dos internautas. Você sabe de onde surgiram os rumores?

Eu recebi um comunicado do pessoal da direção que cuida da coordenação de mídias da USP que dizia que a partir do mês de junho o programa seria transmitido somente aos sábados. Eu fiquei quieto, já que ninguém me chamou para conversar e foi um recado trazido através da coordenadora da rádio avisando que o programa seria transmitido apenas um dia. Eu soube que eles haviam feito uma série de reuniões, que estavam mexendo na programação, mas nunca mandaram nada oficial.

O público ficou sabendo e, de repente, a notícia “viralizou” na internet. Descobri que foi a partir de um site chamado “O clã da negritude”. Um garoto, o Estevão, que mantém este site.

A deputada Leci Brandão entrou também em defesa do samba questionando o porquê da USP estar diminuindo o espaço do programa. No mesmo dia em que ela enviou o comunicado à reitoria e ao governador, ela entrou nas tratativas para a declaração do “Samba Pede Passagem” como bem imaterial e cultural do Estado de São Paulo.

Vale ressaltar que não é a primeira vez que o espaço de “O Samba Pede Passagem” é diminuído. O programa começou junto a fundação da rádio USP em 1978. Foi o primeiro programa de rádio no Brasil a dedicar-se exclusivamente ao samba e, no início, a transmissão era diária.

O importante mesmo foi o resultado, não? 

O resultado foi impressionante mesmo. E me enche de esperança porque raramente você vê os jovens, o povo se manifestando, reclamando e reivindicando por algo. Foi uma explosão de indignação: vai colocar o que no lugar do programa?.

Consagrado pela preservação e divulgação do gênero, o programa volta a ser transmitido também aos domingos e ainda acena com novidades. Entre elas o espaço para o choro. Como foi esse processo de criação? De onde veio esta urgência?

O choro carece muito de espaço, né?

Na realidade, vou continuar fazendo o que sempre fiz: o segundo espaço do domingo sempre foi reservado para um especial ou uma entrevista, além de uma homenagem a algum compositor brasileiro de música instrumental, por isso vinha sempre uma hora só de choro.

Ou seja, isso já era elencado no programa, mas não com esse peso. Agora é o choro que está pedindo passagem

O projeto Clube do Choro, sediado no Teatro Artur de Azevedo, tem adquirido uma notoriedade no sentido de revelar e dar visibilidade para os músicos e entusiastas deste gênero. Você enxerga um diálogo entre a ação da rádio com iniciativas como esta? Como você faz a sua curadoria?

Estou acompanhando este projeto e inclusive já entrevistei o presidente do Clube do Choro.  A ideia – que eu quero fazer ainda – é abrir esse espaço para um programa específico de choro, fazendo essa ponte com os artistas que eles ajudaram a divulgar.

A minha existência toda é musical. Canto em coral desde criança, meus pais já cantavam, meu pai era baixo e minha mãe contralto e antes de ser locutor eu era cantor. Achava que ia ser cantor profissional, mas cai acidentalmente na locução.

Minha curadoria vem muito pelo convívio, por querer conhecer as rodas, vivenciar as comunidades. E o pessoal já procura o programa naturalmente.

As reformas do programa também irão contemplar um repertório que enalteça o centenário do samba. Para você, 2016 é mesmo o centenário do samba?

O samba tem muito mais do que cem anos. Essa imprecisão dos sotaques é no fundo uma questão de regionalismo. Em Minas, temos o caxambu, na Bahia, o samba de roda do recôncavo.

Cada região tem um sotaque, a manifestação é a mesma. Uns mantiveram aquele traço de originalidade mais evidente, outros tornaram-se mais urbanizados devido a influência do rádio, como aconteceu no sul e sudeste.

Eu começo pela primeira gravação de “Pelo Telefone”, cantada pelo Baiano, depois coloco a do Martinho da Vila. Passo pela Tia Ciata, a turma do Estácio: Bide e Ismael Silva. Vou falar dos morros, que sai da maxixada, e outros sambas para atender os desfiles das escolas; daí entra Cartola, que foi outro marco.

E o centenário do samba paulistano? Como podemos caracterizar este samba de São Paulo?

Vou usar aquela pesquisa realizada pelo Osvaldinho da Cuíca, “História do Samba Paulista”, até chegar em quem está fazendo samba hoje em dia. Quero falar sobre os diferentes tipos de samba: o das escolas, samba-canção.

Quero passar pelos terreiros, as festas realizadas nas portas das igrejas, em Pirapora, aquele batuque da Dona Esther. Tem aquele registro feito pelo Plínio Marcos também, com o Geraldão, Toniquinho, Zeca da Casa Verde, e por aí vai.

O caso é o seguinte: a questão de 2014, como o Osvaldinho mesmo fala, é em termos de manifestação carnavalesca. O que o Barra Funda fazia em 1914 não era considerado samba e sim batuque. Como Donga vai e registra o “Pelo Telefone” na Biblioteca Nacional, tomamos 2016 como o marco.

Estamos vivendo um fenômeno chamado das comunidades de samba. A Associação de Terreiros e Comunidades de Samba de São Paulo (ASTEC) se configura à frente destes representantes. E o samba foi tombado como patrimônio cultural imaterial do estado de São Paulo em 2013. Para você, quem protagoniza a chamada resistência do samba? O que mais pode ser feito?

Esses dias mesmo estava com o pessoal da ASTEC no gabinete da Leci Brandão. Todos nós reivindicando por ações oficiais em apoio ao samba; queremos extrapolar esse pouco espaço que temos na Virada Cultural, trazer menos artistas estrangeiros e focar mais nos nacionais.

Em meio a tantas frustrações, o que te motiva?

A grande questão aqui não é o Moisés da Rocha; o importante é o ritmo, o samba enquanto cultura popular ter essa adesão e essa percepção que nem a mídia mesmo atesta. Falta essa outra linha do samba, algo mais raiz, mais comprometido, que possua fundamento.