“O compositor popular é um cronista”, fala Arlindo Cruz em conversa sobre seu novo disco

03/11/2014 00:00 / Atualizado em 09/05/2019 15:38

Arlindo Cruz chegou junto com a chuva. O sambista fez uma curta temporada de shows em São Paulo para o lançamento do seu novo disco, “Herança Popular”. Aproveitando a visita, o Samba em Rede foi descobrir um pouco mais sobre o álbum e sobre o compositor.

A busca pela musicalidade popular em outros gêneros é uma das apostas do trabalho, o primeiro totalmente autoral da carreira. Artistas como Marcelo D2, Maria Rita e Catra fizeram participações especiais no disco, cuja canção-título é uma homenagem a Cartola e Candeia.

Além de exaltar a herança deixada pelos mestres do samba, Arlindo também se propôs valorizar os costumes, tradições e trejeitos que sobrevivem há gerações. O artista traduz todo este legado e dá continuidade a linhagem musical da qual faz parte.

Arlindo Cruz acaba de lançar “Herança Popular”, disco que aborda o legado dos mestres do samba e do povo brasileiro
Arlindo Cruz acaba de lançar “Herança Popular”, disco que aborda o legado dos mestres do samba e do povo brasileiro

O disco tá cheio de inéditas. O que te inspira a compor?

O povo brasileiro sem dúvidas. Recebe os personagens e as histórias e repassa por forma de canção. Mas muita coisa a gente cria também. Eu lembro que quando fiz “Numa cidade muito longe daqui”, eu contava a história do bandido e a polícia, que depois de trocarem tiros e farpas, foram atendidos na mesma ambulância. Meses depois, aconteceu um confronto no Rio de Janeiro da mesma forma. Por incrível que pareça, foi uma coincidência.

O que é a herança popular?

O compositor popular é um cronista. A herança popular é a história que a gente conta do povo para o povo. São as lendas e crendices. Mas acho que a maior herança de todas é o elo da família.

Qual música você tem um carinho especial?

Na carreira é “Meu lugar”. No disco, é a que definiu o projeto, “Herança Popular”.

A cenografia do show tá caprichada. 

O Zeca Ratu foi o nosso cenógrafo. O palco tem duas telas. Uma mostra objetos e elementos que são a herança popular. Pode ser um berloque que o pai deixa para o filho, uma igreja que a mãe frequentava e a filha frequenta, um campo de futebol onde o pai jogava… A outra mostra os personagens da música popular, como Adoniran, Candeia, Cartola, Zeca, Sombrinha, Jorge Aragão. Enfim, gente contemporânea e das antigas. Tem até quem veio depois, como o Marcelo D2, com outro estilo que vem para somar dentro da nossa cultura. Então, quando ascende tudo, o palco vira um verdadeiro retrato do Brasil e do que a gente pensa sobre herança.

É por isso que você escolheu trazer D2, Maria Rita, Catra, esse pessoal que não é samba, mas que agrega…

Que agrega porque bebem na fonte do samba. Eu tenho uma teoria de que um dia todo músico brasileiro vai cantar um samba, pode ser até um roqueiro. Eles pegam um pouco da gente e transformam em outra música, mas com a mesma coisa popular de cantar o povo para o povo. E através dessas pessoas, aumentou a minha popularidade. Tem gente que passou a me conhecer através do Marcelo D2, da Maria Rita e do programa Esquenta, que é o grande homenageado do disco.

Me conta sobre a música com D2 em que você diz que renasceu.

É sobre as pessoas que passaram por muitas dificuldades e renasceram no mundo da fé. A gente cita o salmo 91 para falar sobre não perder a esperança, para aumentar a fé. E os salmos são canções, geralmente são rimados, tem uma métrica que lembra a música. Eu não cheguei a morar na rua, mas convivi com muita gente que morou, sofreu e conseguiu vencer na vida. O próprio Marcelo D2 foi um pouco assim. Ele não assume uma religião, mas se emocionou muito quando cantou o salmo 91 comigo.

O que ele achou quando você propôs essa parceria?

Ele ficou meio assim meio…[risos] Porque eu chamei ele, né? Mostrei a primeira gravação e ele achou legal pra caramba. Então eu perguntei “quer fazer um rap?”. E ele “quero”. Eu falei “a minha ideia é tu cantar esse salmo aqui”. Aí ele começou a ler e a música saiu quase de primeira.

Arlindo, o que seria de você sem o samba?

[risos] Ah, difícil de falar. Eu nasci num berço de samba, na minha casa sempre teve samba. Acho que é meu ar, muito mais do que a minha profissão. É minha devoção também, porque na minha religião, que é o Candomblé, quando acabam os toques tem uma roda de samba. Eu sempre convivi com isso. Costumo dizer que se eu não fosse um sambista profissional, seria amador. Seria um jornalista, produtor, frentista ou bancário, que no fim de semana ia pegar cavaquinho e ir para uma roda de samba.

Qual instrumento você toca quando chega em casa, para relaxar?

É o violão, que foi o instrumento que eu estudei mesmo, apesar de eu não tocar profissionalmente. Eu uso para compor, até para criar um arranjo. É um instrumento que me deixa cantar canções que não têm nada a ver com o samba, tipo Roberto Carlos, Djavan, Chico. Me faz curtir a MPB, que para mim é a mais linda de todas. Eu tava vendo uma entrevista com o Cole Porter e mesmo que eu não fale muito bem para cantar em inglês, eu acho a música do Chico mil vezes melhor [risos]. Emociona muito mais. Dona Ivone Lara! Nossa, é a coisa mais lírica. E as melodias que o Djavan faz canta? Tu chora o disco inteiro, é lindo demais.

E como você classifica o teu gênero na música brasileira?

É samba, com todas as letras. Para mim o pagode não é um gênero, sempre foi uma reunião de sambistas.

Você tem muita música. Você sabe todas de cor?

Mais de 700 gravadas, feitas eu já cheguei a 900, talvez mais. De cor não dá, tem umas que eu já perdi mesmo. Outro dia eu e Zeca estávamos tentando lembrar de uma música que a gente fez numa esquina, de madrugada, tomando uma cerveja, pra um cara que já faleceu, o Deni de Lima. Ele disse que ia guardar para não perder a letra, mas no dia seguinte ele já tinha perdido.

Aproveitando que estamos em São Paulo, quem é teu ídolo do samba paulista?

Tem tanta gente que eu gosto. O Gudin eu adoro. Ele sempre acerta com a Leila Pinheiro. Adoniran, Sombrinha. Tem muita gente nova boa também, tipo Carica, Luisinho SP, Pezinho. Aliás, foi o Pezinho quem me introduziu a modernidade, com “Além do meu querer”. No começo eu relutei um pouco em gravar, mas fez o maior sucesso. Até me tornei mais romântico depois desse compositor. No show, eu faço uma homenagem para ele com “Chegamos ao fim”. Ele é um cara que compõe muito bem.

Confira a canja que Arlindo deu para o Samba em Rede:

“Não penso em mais nada”