O samba sofrido e malandreado de Silvio Modesto

Silvio Modesto conta quando se apresentou com Cartola e como conheceu Plínio Marcos

08/06/2017 00:00 / Atualizado em 09/05/2019 15:38

Carioca de Braz de Pina, Silvio Modesto faz parte da história do samba de São Paulo: integrante da mais antiga escola em atividade, a mítica Lavapés, destacou-se em diversas agremiações paulistanas, entre elas, a G.R.E.S. Pérola Negra. Sob a alcunha de Modesto, Silvio encheu as esquinas e a avenida de música e vida, assinando sambas-enredos memoráveis ou contando causos à altura da sua vasta biografia.

Além de excelente ritmista, partideiro e compositor respeitado, Silvio é um grande enfeitiçador de público. Descobriu-se ator em meio à ditadura militar com a ajuda do dramaturgo Plínio Marcos, caminhou ao lado de Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde, foi gravado por Bezerra da Silva, entre outros tantos, e ainda acompanhou Cartola na gravação de seu último show ao vivo.

Pela grandiosidade dos números que pavimentam sua carreira, a vida parece ter sido uma estrada dourada para Silvio Modesto. Mas nada foi fácil para ele.

Viver do samba e presenciar mais de 60 carnavais, como bem observou Silvio, “não é mole”. É preciso muita força de vontade e determinação para preencher a dura luta pela vida. Mas Silvio tem histórias de sobra guardadas na memória de quem se criou no Morro do Salgueiro e migrou para São Paulo na década de 1970 em busca de uma vida melhor, tornando-se uma das maiores referências do samba da cidade.

Produto no meio do samba

Nascido em Braz de Pina no dia 3 de fevereiro de 1944 e criado no Morro do Salgueiro, Silvio Luiz Fernandes se orgulha da vida e da educação que teve. O gosto pelo samba é de sangue, um reflexo do ambiente familiar e musical que o envolveu na infância. “O processo da verdade é o terreiro, o chamado ‘terreirão’. Lá onde o chão é de terra, o fogo de lenha, tem água fervendo, um café e um bolo de milho. Daqui a pouco já se armava o pagode e lá vai viola”, recorda em entrevista exclusiva ao Samba em Rede.

O menino encontrou cedo uma maneira de se aproximar das tradições do gênero: aos 12 anos já integrava a ala de passistas mirim – também conhecida como “ala dos modestinhos” – da escola de samba Unidos da Capela. Era passista, mestre-sala, tocava tamborim e fazia suas primeiras composições.

Teve de trabalhar para ajudar pagar as contas de casa ao longo de sua adolescência; costumava fazer pequenos bicos como vender limão na feira em troca de uma “caixinha”. Nos intervalos do serviço, Silvio cantava e batucava pelas ruas, sempre de olho nos ensinamentos deixados pelos mais velhos. Aliás, foi nessa época que seu histórico como passista não passou despercebido pelos colegas feirantes: o garoto logo ficou conhecido pelo apelido “modestinho”. Substituído tempos depois por “modesto”, fazendo então surgir a famosa alcunha.

De origem humilde, cortiços e barracos deram guarida a um estilo de vida na estiva que engendrava muito suor da labuta, mas, igualmente, muito tempo ocioso para se embrenhar nas rodas de pagode com cerveja gelada e conversa fiada nos botecos.

Graduado e pós-graduado nas esquinas, como ele mesmo diz, Silvio, quando adulto, se deu conta de que ao lado do papo-furado e da malandragem, a força de vontade maior ainda era a de sobreviver.

Sambista carioca em São Paulo

Na década de 1970, Modesto migra para São Paulo em busca de uma melhor condição de vida. “São Paulo é impressionante. Eu falo e doa a quem doer. Foi aqui eu consegui fazer minha caminha, criar meus filhos. Aqui você trabalhou, você recebe, rapá.”

Para se manter financeiramente, Silvio vendia bilhetes da Loteria Federal pelas ruas do centro da cidade. Outro obstáculo enfrentado por Modesto era o medo da repressão policial com sambistas negros.

Foi justamente nessa condição que Plínio Marcos, importante dramaturgo brasileiro, encontrou-o na Rua Bento de Freitas e fez o convite para que Silvio fosse o novo pandeirista da peça “Balbina de Iansã”, em cartaz desde 1971. Além do atrativo cachê, o emprego trouxe uma oportunidade única: a convivência e a amizade com bambas como Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde.

Começou assim uma nova fase na carreira do sambista, que passou a atuar com frequência nos palcos de São Paulo. Em 1973, participou do espetáculo “Plínio Marcos e os Batuqueiros da Paulicéia”, onde Plínio, acompanhado de Geraldão, Zeca, Toniquinho, Jangada, Talismã e do próprio Silvio, contava as histórias e apresentava as músicas desses compositores anônimos da capital paulista.

Em 1977, aceitou o convite para interpretar Wilson Batista em outra peça de Plínio, “Poeta da Vila e Seus Amores”, que homenageava a vida e obra de Noel Rosa. Na ocasião, Silvio recebeu aulas de José Ramos Tinhorão para aprender o repertório de Noel. Outras portas foram se abrindo depois que Silvio impressionou os colegas e as plateias da cidade com o seu talento. Participou de temporadas de “A Falecida”, de Nelson Rodrigues, e “Ó Abre-Alas”, dirigida por Maria Adelaide Amaral, que contava a história de Chiquinha Gonzaga.

Ainda na década de 1970, Silvio participou da fundação da Banda Bandalha, criada no auge da repressão militar por Plínio e Carlos Costa ou Seu Carlão, o eterno General da Banda, falecido em janeiro deste ano.

A Bandalha durou dois anos; por conta de brigas com a prefeitura, Plínio se injuriou e decidiu se afastar do projeto. Com o fim da Bandalha, seus remanescentes, encabeçados por Carlão, formaram a Banda Redonda, que desfilou pela primeira vez em 1974 e permanece até hoje na programação do Carnaval de rua de São Paulo.

Seu lirismo

Como sambista, Silvio não deixou por menos. Teve passagens por diversas escolas de samba da capital: a Lavapés – escola de samba mais antiga em atividade de São Paulo -, Barroca Zona Sul, Camisa Verde e Branco, Império do Cambuci, Mocidade Alegre, Peruche e Vai-Vai.

Em 1977, o músico passa a frequentar a quadra da Pérola Negra, onde acompanhou de perto o processo de evolução da escola, aprimorando seu estilo de composição e sua vivência no samba; Modesto hoje integra a Velha Guarda Musical da vermelho e azul.

O envolvimento cada vez maior com o gênero rendeu-lhe, entre outras alegrias, a participação no grupo de choro Regional do Evandro. Por 17 anos, Silvio foi surdista ao lado de Evandro no bandolim, Lucio França no cavaquinho, José Pinheiro no violão de sete cordas e Zequinha, o José Reli, no pandeiro.

Foi ao lado dessa rapaziada que Modesto teve a glória de acompanhar Cartola na sua última apresentação ao vivo. O show aconteceu na Ópera Cabaré, em São Paulo, no dia 30 de dezembro de 1978, dois anos antes do mestre falecer. Cartola nos deixou em 30 de novembro de 1980, vítima de câncer.

Além de firmar parcerias com compositores do calibre de Bicalho, Caprí, Toniquinho Batuqueiro, Airton Santamaria, Murilão, Borba, Pasquale, Modesto também foi gravado por conceituados sambistas como Bezerra da Silva, Jovelina Pérola Negra, Originais do Samba, Denílson, Djalma Pires, Arlindo Cruz e Sombrinha, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho e Benito di Paula.

Perguntado sobre suas referências de início de carreira, o compositor aponta nomes como Ataulfo Alves, Carlos do Cavaco, Noel Rosa do Salgueiro e Silas de Oliveira como fontes maiores de inspiração e ensinamento. E recorda, com tristeza, perdas mais recentes de componentes das gerações antigas.

Martirizado pela violência da miséria em que esteve jogado ou engrandecido pelo instinto de sobreviver do samba à margem da mídia, Modesto envelheceu como reflexo da realidade econômica brasileira, e sua obra soa mais atual que nunca no que diz respeito às realidades política e social.

Passados 73 anos de idade e 60 de carreira, o compositor acredita que a cultura e a educação são pilares capazes de transformar o país. Mas não deixa de fazer uma crítica de respeito ao atual cenário político: “É uma vergonha. A minoria com tanto e a maioria sem nada. Tá faltando comprometimento com a nação brasileira.”

Confira a entrevista na íntegra: