A beleza tocante dos castelos no Vale do Loire
Destino é uma sequência de cidades com cenografia medieval que se debruçam sobre o rio que dá nome ao lugar
No centro-norte da França, floresce o Vale do Loire: um corredor histórico de 280 quilômetros que serviu como refúgio de reis que deixaram Paris durante a invasão dos ingleses, nas primeiras metades dos séculos 14 e 15. O resultado desse êxodo imperial foi a criação da maior concentração de castelos do mundo: de um total de mil, mais de 300 estão abertos para visitação.
E não é um passeio meramente contemplativo, em alguns você pode reservar uma mesa para uma refeição repleta de pompa e circunstância e, em outros, até se hospedar. São tantos e tão impressionantes que Leonardo da Vinci passou os três últimos anos de vida em uma dessas construções fortificadas do Loire, após uma longa travessia pelos Alpes no lombo de uma mula carregando na bagagem a recém-pintada Mona Lisa.
O Loire é uma sequência de cidades com cenografia medieval que se debruçam sobre o rio que dá nome ao lugar, declarado Patrimônio da Humanidade desde 2000.
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Equivocadamente destino bate e volta de quem se hospeda em Paris, o Vale do Loire não cabe em um único dia. Mais do que lindos, os castelos são complexos e merecem ser visitados sem pressa. Não é raro ver turistas que acabam se metendo em roteiros apressados com três ou quatro castelos em um mesmo dia. Uma ou duas construções por dia são suficientes e ainda sobra tempo para aproveitar outras atividades além-muros da região.
1 º DIA
Amboise: nos passos de Leonardo da Vinci
A viagem pode começar por Amboise, a uma hora e 40 minutos de trem a partir do aeroporto Charles de Gaulle. É o ponto mais distante do roteiro, mas a ideia foi começar longe para que, no último dia, estivéssemos mais próximo da capital francesa para o voo de retorno (ou para emendar em outro destino francês).
A 226 quilômetros de Paris, essa comuna do departamento de Indre-et-Loire não só marca o início da viagem, mas também o surgimento do Renascimento francês, cujo principal mecenas foi Francisco I. O jovem rei da França, que reinou de 1515 a 1547, tinha faro apurado para as artes, não só por conta de seu nariz avantajado, que lhe renderia o apelido de “Francisco do Nariz Comprido”.
Após vencer guerras na península italiana, Francisco retornou à França fascinado com os trabalhos de Leonardo da Vinci. A admiração rendeu um convite ao artista para morar em um dos castelos da corte francesa e acabou virando o “primeiro pintor, arquiteto e engenheiro do rei”.
Cada um dos detalhes desse intercâmbio artístico pode ser conferido no Castelo de Clos Lucé, considerado a última residência de Da Vinci, morto no local em 1519. O castelo, erguido em 1471 e conhecido, originalmente, como Solar de Cloux, tem programação para o aniversário de 500 anos de morte do artista italiano, no ano que vem.
O mestre do Renascimento está em todos os lugares, dentro e fora do castelo. Os jardins dessa construção de tijolos vermelhos e pedras calcárias dão acesso ao Parque de Leonardo da Vinci, um museu ao ar livre com réplicas das invenções do artista, a partir de rascunhos feitos por ele. O paisagismo também é inspirado nos seus trabalhos, como a inovadora Pont à Double Travée, ponte de dois níveis que cruza uma lagoa, rodeada por um bosque. Caminhar ali é como poder andar dentro de um dos quadros de Leonardo da Vinci. “Aqui, Leonardo, você será livre para sonhar, pensar e trabalhar”, teria dito o rei, assim que o pintor chegou à França, já com 64 anos de idade.
No interior do castelo, é possível visitar também ambientes que recriam espaços frequentados por ele, como o quarto onde morreu sobre a cama de dossel renascentista e a espaçosa cozinha, em que o vegetariano Leonardo provava a comida preparada por sua cozinheira Mathurine.
Um dos destaques é a reconstrução do ateliê em que Da Vinci criou suas obras. Dali saiu o quadro “São João Batista”, concluído durante sua estadia no Clos Lucé, e o inacabado “A Virgem e o Menino com Santa Ana”. Ao lado, animações em 3-D recriam suas invenções tecnológicas.
Do seu quarto, Leonardo tinha vista privilegiada de outra construção nobre da cidade, o Castelo Real de Amboise, residência de seu anfitrião, Francisco I, a 400 metros dali. Diz a história local que um corredor subterrâneo conectava Amboise e Clos Lucé, por onde o rei passava sem ser percebido. Nenhuma prova confirma a teoria, mas em terras de castelos, reis e gênios, tudo pode ser possível.
É no Castelo Real de Amboise que fica o túmulo de Leonardo da Vinci, na capela de Saint Hubert, uma construção gótica do século 15 que homenageia o patrono dos caçadores, uma das atividades mais comuns do Vale do Loire na época.
O terraço do castelo, que servia como um mirante estratégico para o Rio Loire, hoje rende minutos de suspiro frente ao maior rio da França. Com pouco mais de mil quilômetros de extensão e com foz no Oceano Atlântico, ele é conhecido pelos traiçoeiros bancos de areia. É daí que surge o toue, uma embarcação plana com apenas 20 centímetros de calado, desenhada para navegações em águas rasas.
A navegação acontece ao longo do dia, em diversos horários de saídas. Porém, o final de tarde a bordo é uma das opções mais belas do roteiro. A travessia pode ser acompanhada de um piquenique, servido ali mesmo sobre aquela estrutura de madeira. No cardápio, tábua de frios e queijos, pães e, claro, muito vinho francês.
Onde comer em Amboise
La Brèche é um restaurante com mesas no jardim, tem cardápio francês caprichado com pratos do Vale do Loire, como o Poulet Fermier Orléanais, uma espécie de rótulo de Denominação de Origem de uma produção específica de Orléans, em que os frangos são criados ao ar livre e com alimentação vegetal. O prato acompanha miniovos e mostarda de Orléans. Menu completo (entrada, prato principal e sobremesa), a partir de € 28. labreche-amboise.com.
2º DIA
Jardim da França
Conhecido também como Jardim da França, o Vale do Loire impressiona pela simetria dos jardins que rodeiam os castelos. São tantos detalhes históricos e tanta beleza que fazem as visitas fora das propriedades serem tão empolgantes como as feitas dentro. Assim, o segundo dia do roteiro fica reservado para o Castelo de Chaumont-sur-Loire, que só em 2017 recebeu 430 mil visitantes. Erguido no ano 1000 como fortaleza e endereço da família Amboise por 500 anos, esse castelo da comuna de Chaumont-sur-Loire ganhou o mundo com seu Festival Internacional dos Jardins. Espalhados por alamedas da propriedade, os jardins são verdadeiros trabalhos paisagísticos de arquitetos e cenógrafos.
Sob o tema Jardins de la Pensée (Jardins do Pensamento, em português), artistas de países como Japão, Coreia do Sul, Rússia e França apresentam obras que vão além de flores, como um jardim azul de meditação e instalações interativas.
O tripé patrimonial-paisagístico de Chaumont-sur-Loire se completa com a arte contemporânea, exposta do lado de fora das grossas paredes do castelo. Há exatos dez anos, o local recebe artistas de todo o mundo que participam de uma residência artística que culmina com a exposição de suas obras ao ar livre.
Arte contemporânea traz novos ares para castelos tão antigos, como a bela obra Connexion, em que a artista japonesa Tanabe Chikuunsai faz uma escultura gigante com bambus trançados; e a emocionante Le Nide des Murmures (“o ninho do sussurro”), criação da francesa Stéphane Guiran, que assina uma espécie de campo de flores com cristais de quartzo do Marrocos, ao som de murmúrios como trilha sonora.
O Brasil está representado por Henrique Oliveira, artista de Ourinhos, no interior de São Paulo, responsável pela obra Momento Fecundo, na qual placas de madeira compensada dão forma a uma espiral que serpenteia e ocupa todo o espaço.
As opções de entretenimento do castelo são tão amplas que a própria administração do local recomenda que a visita dure oito horas ou que se estenda para dois dias para dar conta de toda aquela suntuosidade compilada em mais de dez séculos de história.
Mas se você apressar o passo, ainda dá para incluir mais um castelo no seu segundo dia de viagem. A vizinha Blois é endereço de outra construção que impressiona no Vale do Loire. Erguido no século 9º como fortaleza, o Castelo Real de Blois é conhecido como exemplo da evolução da arquitetura francesa, entre os séculos 13 e 17, com os estilos gótico, renascentista e o clássico. Em outras palavras: por onde se olhe, uma vez no pátio interior, a sensação é de visitar quatro castelos diferentes em um mesmo endereço.
Seu acervo abriga 35 mil obras, algumas delas expostas em salas forradas de belas pinturas. Uma das novidades tecnológicas são os tablets com programa de realidade virtual que recriam os antigos ambientes do castelo, a partir de imagens em 360° que surgem na tela.
E como tudo no Loire beira a fábula, o castelo abriga o quadro da italiana Lavinia Fontana que retrata Antonieta González, cujo aspecto selvagem do rosto (devido à hipertricose, doença que provoca aumento excessivo de pelos), teria inspirado a história de “A Bela e a Fera”.
Onde comer em Chaumont-sur-Loire
Da cozinha do chef François Xavier Bogard saem pratos que são como peças de arte, inspirados nos temas propostos pelo Festival Internacional de Jardins, servidos sob uma estufa do Castelo de Chaumont-sur-Loire. Destaque para o arrojado fraises des pois (€ 15), sobremesa com creme de verbena, compota de morango e ervilha verde. Os menus incluem prato principal, café e vinho (€ 30) ou entrada, principal e sobremesa (€ 42).
3º DIA
Cheverny: castelo em quadrinhos
Certos castelos do Loire parecem cenários de desenho animado. E no caso de Cheverny, ele é mesmo. De férias pela região, no início dos anos 1940, o cartunista belga Hergé viu, de longe, a fachada principal do Castelo de Cheverny e se inspirou nessa construção do século 17 para ambientar as histórias de Tintin e do Capitão Haddock, no fictício Château de Moulinsart.
Em um edifício anexo ao castelo, o Les Secrets Moulinsart tem exposição permanente com salas temáticas que relembram as aventuras do jovem repórter. Com apenas nove salas, o museu conduz o visitante por uma viagem visual e sonora com cenografia que faz a gente se sentir em uma história sequenciada de Hergé, com trechos de filmes, diálogos ecoando nos corredores e exibição dos primeiros desenhos do cartunista.
Mas não é de hoje que esse castelo flerta com a literatura. Ali há também 34 painéis de madeira, feitas pelo pintor francês Jean Monier, com cenas do clássico “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes.
A uma hora e 40 minutos de Paris e a 15 quilômetros de Blois, Cheverny é para ser explorado aos poucos. Sob os cuidados da família Hurault há mais de 600 anos, essa construção tem histórias da realeza francesa que se tornam realidade até hoje. O herdeiro da família Hurault, Charles-Antoine de Vibraye, mora em um dos pavilhões do castelo com sua esposa e os três filhos.
Chamado de “palácio encantado” pela Gran Mademoiselle, como era conhecida a duquesa Ana María Luisa de Orleans, Cheverny é uma bem preservada mostra do luxo da época, como o mobiliário de carvalho, lareira neorrenascentista na sala de jantar e impressionante tapeçaria nas paredes que contam a história dos poemas épicos da Odisseia, do grego Homero.
A pequena Chambord
A minúscula Chambord tem pouco mais de cem habitantes e um castelo de proporções colossais. Em uma área equivalente ao tamanho de Paris, com muros que chegam a 32 quilômetros de extensão, o Castelo de Chambord abriga 300 lareiras e 90 salas abertas à visitação, de um total de 426 dependências. Não é à toa que é considerado o maior palácio de todo o Vale do Loire.
Do lado de fora, uma floresta de 5 mil hectares recebe safáris guiados para observação de animais como javalis e veados, cujo ápice da experiência é a brama emitida por esse animal no período de acasalamento, entre setembro e outubro. Desde 2017, o Grande Promenade (“Grande Calçadão”) disponibiliza mais de 20 quilômetros de trilhas pela floresta, a mais nova atração ao ar livre desse que é considerado o maior parque fechado da Europa.
Obra-prima do Renascimento francês, Chambord começou a ser erguido em 1519, como prova de poder do rei Francisco I, o mesmo que levou Leonardo da Vinci para o Vale do Loire. O projeto arquitetônico foi inspirado nos trabalhos do mestre, como a escadaria em espiral dupla, ponto alto da visita. Espécie de coluna vertebral do castelo, a obra permite que as pessoas subam e desçam por rampas geminadas sem que se cruzem. Coisas de Leonardo da Vinci.
O castelo, conhecido pela mistura harmoniosa das arquiteturas medieval francesa e renascentista italiana, só seria finalizado no reinado de Luís XIV, no século 17, que transformaria uma antessala da propriedade em teatro, onde Molière apresentou pela primeira vez a comédia-balé Monsieur de Pourceaugnac, em 1669.
Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, Chambort foi endereço também do esconderijo de mais de 5.400 caixas com obras francesas dos museus de Paris durante a Segunda Guerra Mundial.
Onde comer em Chambord
O menu assinado pelo chef Alexandre Trazeres é arrojado, como o creme de tomate e papaia com tiras de melancia e soja confitada (€ 13). Mas o melhor desse restaurante é o terraço com vista única do vizinho Castelo de Chambord. Pratos principais, como o pato com figo confitado, a partir de € 23. relaisdechambord.com.
4º DIA
Chartres: e fez-se a luz
A viagem vai chegando ao fim, mas não sem antes fazer uma parada de pelo menos uma noite em Chartres, a uma hora de trem de Paris.
Desde que seu centro medieval foi revitalizado, em 2001, essa cidade com talento cenográfico para filmes de época entrou na rota turística do Vale do Loire com seu Chartres en Lumières.
Lançado em 2003, esse festival de video mapping joga luz sobre monumentos, igrejas, ruas e pontes, ao longo de seis meses, entre abril e outubro, considerado único em todo o mundo pela longa duração. Autoguiado e ao ar livre, o evento acontece em 24 pontos da cidade e conta até com um trenzinho que realiza um circuito pelos locais de projeção.
O ponto máximo do Chartres en Lumières é o mapeamento da Catedral de Chartres (Notre-Dame), um templo imponente que começou a ser construído em 1134. Patrimônio da Humanidade pela Unesco, o local é considerado uma das maiores catedrais da França e uma das mais preservadas construções góticas do gênero.
É paralisante ver suas fachadas se preencherem com as luzes que recontam a história de sua construção e realçam os tons fortes dos antigos vitrais. São 5 mil figuras sacras, ao longo de 2.600 m² de vidraças decoradas.
Ao longo do ano, tours diários levam visitantes à sua cripta, a terceira maior da Europa, um corredor subterrâneo de mais de 200 metros que recria a passagem de peregrinos da Idade Média.
E de volta a Paris, a gente termina a viagem com a sensação de que viveu capítulos de uma autêntica história medieval. Daquelas que levaram séculos para serem escritas.
Onde comer em Chartres
Café Bleu é opção concorrida, sobretudo no happy hour. O cardápio enxuto tem opções como o tartare de carne (€ 15), pé de porco grelhado (€ 17) e supremo de frango com mango e chutney (€ 17). Excelente pedida para provar os drinques da casa com vista para a Catedral de Chartres. cafebleu-chartres.com
Por Eduardo Vessoni