Como as praias inglesas moldaram o jeito como viajamos hoje

Segundo sociólogo britânico John Urry, balneários do país foram o primeiro grande destino turístico da massa de viajantes

Em 1990, o sociólogo britânico John Urry publicou o livro “O olhar do turista”, um marco nos estudos sobre o turismo de massa e que hoje é uma obra obrigatória para todos os estudantes da área. Na época, o fluxo de viajantes pelo planeta não era nem metade do 1,3 bilhão registrado no ano passado pela Organização Mundial do Turismo (UNWTO, na sigla em inglês).

Em 2016, só Hong Kong, na Ásia, teve 26,6 milhões de desembarques internacionais, segundo o Euromonitor –foi o destino mais visitado do mundo naquele ano, seguido por Bangkok, na Tailândia, com 21,2 milhões de visitantes, e Londres, na Inglaterra, com 19,2 milhões.

Nos anos 1950, o balneário de Blackpool, ao noroeste de Manchester, era um típico refúgio de veraneio da classe trabalhadora britânica

O argumento de Urry em seu clássico livro é que o olhar do turista sobre os destinos que ele frequenta tem a capacidade de alterá-los significativamente. A maneira como se percebe o lugar ao qual se viaja determina as relações, as atividades e os planos do lugar que recebe esse olhar.

O olhar do turista, por sua vez, também é construído a partir de determinados aspectos sociais, como o lugar em que ele trabalha, o que costuma fazer em seu tempo livre disponível e as atribuições de status que as relações entre pessoas estabelecem sobre cada local.

Morecambe, na Inglaterra

Estudando as viagens pela Inglaterra –onde o sociólogo acredita que o turismo se massificou– após a 2ª Guerra Mundial, ele diz que alguns fenômenos afetaram o olhar do turista britânico: houve uma a expansão dos transportes (mais carros vendidos pela indústria, aumento das viagens de ônibus e crescimento do mercado de pacotes de viagens e passagens aéreas), o crescimento de organizações dedicadas a organizar roteiros a partir de grupos específicos, o desenvolvimento de acampamentos de férias e dos cruzeiros de lazer.

Mesmo assim, as cidades à beira-mar seguiram sendo o principal destino de desejo dos ingleses em suas férias, o que proporcionou uma onda de investimentos de empreendimentos dedicados a recebê-los e das prefeituras de cada região.

“No pós-guerra, se desenvolveu uma indústria que se tornou particularmente voltada para lidar com as pessoas em massa e passou a ser extremamente eficiente e organizada, no sentido de atrair verdadeiros exércitos de trabalhadores das cidades”, escreve Urry em “O olhar do turista”.

Brighton é o destino de praia mais famoso da Inglaterra

Se, no século 19, os balneários ingleses se situavam ao Sul, enquanto os do Norte atendiam apenas pequenos mercados locais, no século seguinte a situação mudou por causa da especialização dos balneários à classe trabalhadora. O Norte, assim, se estruturou para recebê-los, como é o caso de Morecambe, que competia com Blackpool pelos turistas proletários de Lancashire, o polo de produção têxtil inglês, cujas ligações ferroviárias eram melhores e ficavam mais próximas uma da outra. Morecambe acabou se tornando destino comum dos habitantes de Yorkshire e cidades adjacentes, cujas conexões de trem eram melhores.

Morecambe, no entanto, não conseguia atrair turistas de classe média, pois o crescimento de visitantes na cidade sempre esteve atrelado à excursão diária. A situação se inverteu a partir do século 20, quando a população cresceu consideravelmente e se expandiram os investimentos aplicados em atrações e hospedagens para o turismo de massa.

A prosperidade dos balneários da região sempre esteve atrelada ao momento da indústria de Yorkshire –de forma que, quando os seus negócios iam bem, mais pessoas viajavam.

Bangalôs em Southwold, na Inglaterra
Créditos: VictorHuang/iStock
Bangalôs em Southwold, na Inglaterra

Outras duas cidades também tiveram um papel importante no novo turismo de massa que surgia: Brighton, a primeira praia dedicada ao “prazer”, e Birchington, a primeira da Inglaterra a ter bangalôs.

Brighton foi o local dos mergulhos medicinais do século 18, mas logo se tornou o lugar para “escapar dos padrões e ritmos da vida cotidiana”. O autor diz que a praia se tornou um carnaval,  pois o corpo sem pudor, “grotesco”, exposto aos demais, se contrastava do corpo disciplinado. Brighton foi, assim, estruturada como uma praia de prazer, de mistura social e ao carnaval.

Birchington, por sua vez, se amparou nos bangalôs pelo público que ali passou a se estabelecer e que procurava belas paisagens, acomodações distantes das outras pessoas, contemplação do mar em solidão, prática da natação e a percepção de necessidade de um espaço semi-privado para a família. No século 20, quando se popularizaram entre as classes médias baixas, eles perderam o peso de seu status.

Os balneários logo perderiam a atratividade de antes: “Tornaram-se apenas um entre o grande número de objetos potenciais do olhar do turista. Passar férias de uma semana ou de 15 dias à beira-mar, na Grã-Bretanha, atualmente é uma experiência turística considerada menos atraente”, diz ele.

O Center Parcs, na floresta de Sherwood, em Nottinghamshire
Créditos: Divulgação
O Center Parcs, na floresta de Sherwood, em Nottinghamshire

A ruína dos balneários explica, em parte, o modo como as pessoas viajam pelo mundo hoje: as ofertas de lazer e divertimento nessas cidades rodeavam parques de diversão, que foram ultrapassados nos anos 1960 por outros tipos de parques em regiões não sempre próximas ao mar, mas acessíveis por rodovias –caso da Alton Towers.

Em 1987, foi construído o Center Parcs, na floresta de Sherwood, em Nottinghamshire, uma área na qual uma ‘orla marítima’ artificial foi construída com um domo gigantesco de plástico, de camada dupla e que mantém uma temperatura constante de 28ºC.  O investimento à época foi de £ 34 milhões (R$ 166 milhões, na cotação atual). O parque, obviamente, foi um marco no turismo moderno inglês.

“Essa construção é um exemplo de como, ao contrário do que se acreditava, os balneários fossem extraordinários por sua concentração de mar, areia, sol e a ausência da indústria. Na medida em que os homens agora podem construir lagoas e paisagens atraentes, a atração exclusiva do mar perdeu força”, explica Urry.

Além do mais, após a guerra, o sociólogo diz que não era mais o mar que trazia saúde e senso estético, mas o sol: o corpo ideal passou a ser aquele bronzeado e, nesse sentido, os balneários ingleses nunca foram os melhores. Uma lógica completamente diferente do século 19, quando a pelve alva significava ócio e reclusão e tinha um valor social mais significativo. Na era da pele bronzeada, as praias do Mediterrâneo ganharam vigor que a Inglaterra nunca pode competir.

Com a popularização da televisão, dos espetáculos e dos cinemas e a internacionalização do turismo contemporâneo, enfim, ir à praia na Inglaterra deixou de ser a viagem das férias: visitar outros países se tornou o novo “extraordinário”.