Conheça Nicósia, a última capital dividida por um muro no mundo

Parte de Nicósia é administrada pela República do Chipre e outra pela República Turca do Norte do Chipre

A casa da escritora americana Elsie Slonim, autora de “Ahead of Time” (sem tradução no Brasil), em Nicósia, no Chipre, não é tão acessível para seus leitores e admiradores: para visitá-la, é preciso enviar um pedido de autorização para o Ministério de Assuntos Exteriores de um Estado não reconhecido no exterior.

Além disso, seu quarteirão é protegido por militares que não deixam ninguém entrar sem uma revista completa e a apreensão momentânea do passaporte. Passada a barreira, entra-se por ruas vazias que, quando se encontra com alguém, é um soldado de um exército estrangeiro.

Vista de Nicósia, capital do Chipre; cidade é divida por um muro
Créditos: peeterv/iStock
Vista de Nicósia, capital do Chipre; cidade é divida por um muro

Judia de pais austríacos e com um passaporte americano que a salvou do holocausto, na 2ª Guerra Mundial, ela presenciou alguns dos acontecimentos mais importantes do século 20: um deles está ali, no quintal de sua casa. Quando Elsie se casou pela segunda vez, com um tenente do exército turco-cipriota, foi em Nicosia que eles foram viver. Desde então, a escritora é uma das poucas testemunhas da história complexa da atual capital do Chipre, país a 240 km do Líbano, continente mais próximo.

Nicósia é considerada hoje a última capital dividida por um muro no mundo e, dentro dela, Elsie é a única civil da zona militarizada.

Nicosia, Cyprus : March 12, 2014 : Kyrenia Gate forms part of the ancient walled city boundary of Nicosia in Turkish North Cyprus.
Créditos: Philip_Willcocks/iStock
Nicosia, Cyprus : March 12, 2014 : Kyrenia Gate forms part of the ancient walled city boundary of Nicosia in Turkish North Cyprus.

Tudo começou em 30 de dezembro de 1963, quando o oficial britânico Michael Perrett-Young traçou com um lápis uma linha verde no mapa da cidade, do extremo das muralhas venezianas até o outro. O objetivo era frear os enfrentamentos entre as duas comunidades locais: a dos greco-cipriotas e a dos turco-cipriotas, que naquele mês deixaram uma centena de mortos no território que, à época, estava sob controle da Grã-Bretanha.

As disputas étnicas duraram 11 anos, até que, em julho de 1974, a Turquia respondeu uma tentativa de golpe de Estado financiado pela Grécia no Chipre com uma invasão militar na ilha. Ao final daquele mês, 180 mil pessoas, ou cerca de um terço da população grega do Chipre, foram obrigadas a abandonar suas casas e se mudar para a parte sul da ilha. Ao mesmo tempo, aproximadamente 40 mil turco-cipriotas foram correndo para o Norte ocupado pelos turcos.

O conflito acabou com mais de 4 mil pessoas mortas dos dois lados –494 turco-cipriotas e 1,4 mil greco-cipriotas estão desaparecidos até hoje.

Desde então, a maior parte da ilha é administrada pela República do Chipre, membro da União Europeia desde 2004 e onde vivem 80% dos habitantes da ilha — todos gregos. Do outro lado está a República Turca do Norte do Chipre (RTCN, na sigla em inglês), reconhecida apenas pela Turquia. O território ocupa um terço de toda a ilha.

A linha desenhada pelo oficial Perrett-Young era, na verdade, uma linha de proteção provisória de cerca de 10 metros de largura que se ampliou para toda a ilha, perpassando 180 km, se transformando em uma fronteira que, desde 1974, divide Nicósia em duas partes: de um lado da divisão, está a capital turca de Lefkosa, enquanto, do lado dos gregos, pulsa a turística Lefkosia — ambas nas margens do Mar Mediterrâneo.

A parte grega de Nicósia é ainda hoje um labirinto de ruas, bancas, jardins e restaurantes para os turistas europeus que inundam os hotéis e as praias no verão. A parte turca, por sua vez, é muito mais tranquila: o que mais se ouve durante o dia são os chamados de oração da Catedral de Santa Sofia, a principal mesquita da parte turco-cipriota. Apesar da presença constante dos militares, a vida turca de Nicósia também é tranquila: bandeiras do país ocupam todas as casas, imigrantes turcos ocupam as ruas e os estabelecimentos e mesmo os oficiais caminham pela região usando apenas pistolas de pressão.

Famagusta

A fronteira também divide a cidade de Famagusta, a 61 km dali: antes da invasão turca, o balneário na costa Oeste da ilha, com suas praias de areia branca, era a principal atração turística do Chipre. A cidade procurava se manter ligada ao seu rico passado ao longo dos séculos, com muralhas venezianas e a mesquita Lala Mustafa Pasha, antigamente chamada São Nicolau, uma réplica da catedral francesa de Reims e construída pela dinastia luso-francesa que governou o território entre os séculos 14 e 15.

Uma das questões não resolvidas após a invasão turca, nos anos 1970, balneário que era destino turístico hoje atrai curiosos
Créditos: dimitrisvetsikas1969/Pixabay
Uma das questões não resolvidas após a invasão turca, nos anos 1970, balneário que era destino turístico hoje atrai curiosos

Abandonada pelos seus antigos moradores e fechada pelos militares turcos com arames farpados, grande parte da cidade está esperando até hoje por um aguardado fim do impasse entre turcos e gregos. A crise financeira na parte sudeste da ilha após 2008 suprimiu as questões da reunificação, que sequer foi mencionada nas eleições presidenciais desde então. O atual governante do Sul, Nicos Anastasiades, geralmente afirma ser a favor de dialogar com o Norte turco, liderado pelo presidente Dervis Eroglu.

A Turquia está interessada em recomeçar as negociações. “Nós devemos incentivar os dois lados do Chipre a encontrar uma solução juntos”, disse o ministro turco para assuntos europeus, Egemen Bagis, ao também periódico britânico The Guardian. “Eles são como casados. A Turquia, a Grécia e a Grã-Bretanha são como parentes que querem salvar o casamento”.