Ilha de Marajó, um caderno que é uma viagem

Ilustrações de Silvia Reali, do site Viramundo e Mundovirado

Um caderno de viagem é um slow travel. A foto é um tiro, mas o desenho uma meditação. Para entrar no clima do mundão de águas de Marajó, escolhi a aquarela porque flui na mesma sintonia.


A surpresa do espelho das águas me fisga em cada rio ou igarapé, e ainda repete toda a beleza. Os guarás vermelhos nos mangues, são mais belos em cima ou no avesso?


Meu trabalho também foi dobrado para mostrar a real vida de cima em contraponto com a vida bamboleante no reflexo das águas.


Aquarelando conheci esse lugar onde acontecem coisas que não se passam em nenhum outro local do mundo. O rio Amazonas depois de serpentear pela imensidão das terras brasileiras, foi depositando na foz tudo o que carregou pelo caminho. Por isso os índios marajoaras batizaram a ilha de Mbará-yó, o “tapa-mar”.

O rio Amazonas se esparrama prazeroso por seu interior e vai abrindo caminhos aquáticos dentro da mata, os canais, igarapés, furos, minas, sangradouros, igapós e lagoas. Quase nunca, porém, as águas são tranquilas, ou é “mó do bró” como me ensinam os marajoaras: nos meses que terminam em bro, como setembro, novembro …, a lua endoida e as águas incham. Ou por causa das chuvas, de dezembro a abril, quando 2/3 das terras de Marajó ficam submersas. Por isso a valia de uma casa-barco. Qualquer corredeira mais forte, ou se a maré tá baixa, ou mesmo se diluviar, é só ancorar no seguro da margem e esperar a ressaca passar (o que também vale para o barqueiro).


Quem regula toda a vida dos marajoaras são as águas. A verde e salgada ou a água doce cor de garapa dos furos, ou ainda a dos rios cor de cerveja. Para ir pralapracá, há barcos de todo tipo: os pequenos são montaria, os barcos a motor mais velozes são as voadeiras, e há os navio-gaiolas com redes coloridas que apinham o deck, e onde a gente dorme duplamente embalado pelo balanço da rede e da maré.


As índias marajoaras moldaram em seus próprios corpos as tangas de cerâmica, única vestimenta do gênero no mundo, que depois recobriam com delicados desenhos. As oleiras produziram em barro nossa primeira e mais refinada manifestação artística nas cerâmicas utilizadas nos rituais, e nas urnas funerárias.

A música e a dança também têm origem nas águas. As morenas marajoaras enfeitam-se para dançar o carimbó. Sugerem as escamas das sereias com saias e blusas estampadas em cores vivas, e os colares de contas são como bolhas d’água. Seu par faz volteios em torno dela com movimentos que lembram o pescador remando.


O açaí todo mundo do lado de cá da linha do equador já conhece. Mas, e o umari, camutim, marajá, piquiá, e a cutite-cutitiribá? São frutinhas silvestres, humildes no tamanho, mas perfumadíssimas para comer com o cremoso queijo marajoara feito de leite de búfala. E o chibé, alguém sabe o que é? Pois os índios sabiam: che –eu, e ibe– caldo. Servido em cuias, é a base de farinha de mandioca, água, pimenta-de-cheiro, sal, um pedaço de pirarucu, e camarões secos.


No coração da Ilha de Marajó, sobre o lago Arari, fica uma vila inteirinha construída sobre pilotis. Isso quer dizer as casas, os mercadinhos, o posto de saúde, até mesmo a igreja e o coreto. Ali, as crianças aprendem a nadar antes mesmo de andar, e para ir de um lugar a outro há um labirinto de passarelas.


As lendas marajoaras são ligadas ao mundo aquático, como a da cobra grande; a do boto, um dom juan fluvial; e a da Uiara, a bela sereia. Quando esta se entendia convoca todos seus filhos: Maré-Morta, Maré-Viva, Repiquete, Correnteza, Rebojo, Remanso, Vazante, Enchente, Preamar e a caçula, dançadeira e briguenta, Maré-da-Lua, para levantarem a onda grande, a Pororoca.

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