O medo de viajar sozinha revela mais do que podemos imaginar
Felizmente, as mulheres, cada vez mais, estão compreendendo que ocupar espaços públicos sozinhas é algo que precisa acontecer
Uma imagem da fotógrafa Ruth Orkin passou na minha timeline e me fez refletir sobre o andamento deste texto. Conhecida como “An American Girl in Italy” (“Um garota americana na Itália), a imagem, fotografada em 1951, mostra uma moça americana passeando sozinha pelas ruas de Florença enquanto todos os homens ao redor a assediavam.
A imagem, apesar de antiga, ainda retrata o que acontece quando uma mulher ocupa um espaço público sozinha. Nos olhares assediadores daqueles homens, a mensagem é clara e ainda atual: mulher sozinha em espaço público pode, mas não sem consequências.
Durante minha análise, fiquei pensando se esse era o motivo que impede muitas mulheres de viajarem sozinhas. Fiz uma busca no Google da palavra-chave “viajar sozinha” e foi suficiente para encontrar uma enxurrada de textos como: “saiba como perder o medo de viajar sozinha”, “10 dicas para enfrentar o medo de viajar sem companhia” e por aí vai.
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Não há nada de errado em textos como esses. Eu mesma escrevo muito deles. Afinal, podem ajudar muitas mulheres. Contudo, senti falta de uma análise mais profunda sobre o medo de viajar sozinha. Temos medo por conta do assédio ou ainda há outros motivos? Foi o que questionei.
Resolvi conversar com outras mulheres sobre o assunto. Publiquei um post em um grupo do Facebook, só de mulheres, questionando os motivos que as impediam de viajar sozinha. Não foi surpresa, infelizmente, ler respostas como: medo da insegurança, de estupro e medo por ser mulher.
As respostas comprovaram o que eu já imaginava. O medo por ser mulher ainda é um dos motivos que nos impedem de ocupar espaços públicos sozinhas.
Fran Tonkiss, em seu livro “Space, the City and Social Theory”, comenta que “o medo das mulheres ‘tem gênero’, no sentido que se baseia em sentimentos de vulnerabilidade frente aos homens […] O medo das mulheres, além disso, está espacializado. Suas percepções do perigo tem uma geografia específica e isso pode determinar os movimentos rotineiros das mulheres no espaço urbano”
Ou seja, embora possamos afirmar com base da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da própria Constituição do Brasil que temos o direito de ir vir, no cotidiano esse direito ainda não é plenamente colocado em prática por conta do medo de assédio e estupro.
Quando pensamos em mulheres negras, a questão se agrava ainda mais. Os negros, principalmente no Brasil, são segregados a determinados espaços públicos. Sendo assim, uma mulher negra sofre com o medo não somente do assédio, mas também do racismo.
Como vimos, o medo delimita os espaços das mulheres na sociedade, principalmente quando estão sozinhas. Isso é fato. Ele é uma reação direta da insegurança e também do fato das cidades serem pensadas e planejadas para os homens, principalmente brancos. Todavia, como se não bastasse a insegurança, descobri que outros fatores impedem mulheres de viajarem sozinhas.
“Não sou capaz de viajar sozinha”: a independência foi impedida de aflorar
Segundo Mauro Calliari, no livro “Espaço público e urbanidade em São Paulo”, a dominação dos espaços públicos das cidades brasileiras ocorreram, e permaneceram durante longo período, pelos homens “bons” (livres e donos de terras), escravos e comerciantes.
Em meados do século 19, as mulheres brancas permaneciam em casa. Só eram autorizadas a sair em dias de procissão e sempre acompanhadas. Ou seja, uma geração toda de mulheres foi criada para ser dependente de uma figura masculina.
Isso só começou a mudar na virada do século. Além disso, a mudança efetiva só foi observada quando as mulheres entraram no mercado de trabalho. Supostamente, nos dias atuais, temos a liberdade de ocupar os espaços públicos sozinhas. Entretanto, como já mencionado, o medo é um grande empecilho. Só que ele não é o único.
Conversando com mulheres, obtive respostas que me fizeram questionar: será que ainda não temos um reflexo do passado, em nossa criação, que nos faz acreditar que somos incapazes de seguir sozinhas?
Algumas mulheres responderam que possuem medo de viajar sem companhia, pois sentem que não são capazes de se virar e temem precisar de ajuda e não encontrar ninguém. Isso me fez pensar no fato de que muitas de nós recebemos uma criação com base na dependência emocional do outro.
Essa dependência, fruto do passado e de uma sociedade com raízes patriarcais, ainda hoje faz com que muitas não consigam desenvolver plenamente a independência e precisem de uma figura para se sentir seguras.
Não nego que o fato de vivermos em sociedade, ou seja, em grupo, não nego também que somos uma geração que teme a própria companhia e que esses fatores são relevantes para gerar medo de viajar sozinha. Além disso, podem impactar os homens também.
Todavia, são as mulheres que ainda são criadas para uma vida dependente do outro, da família, que não priorizam a elas mesmas e que acabam não acessando questões internas importantes. Por tanto, somos nós que, muitas vezes, somos criados para não desenvolver a independência.
Ocupando espaços públicos e resistindo
Ainda que falte muito para avançarmos na garantia do nosso direito de ir e vir e na nossa plena independência, não podemos negar que a desconstrução do padrão de comportamento dependente e o enfrentamento do medo está acontecendo.
Felizmente, as mulheres, cada vez mais, estão compreendendo que ocupar espaços públicos sozinhas é algo que precisa acontecer. Isso é importante para que haja normalização, para que os homens entendam, de uma vez por toda, que nosso lugar é em qualquer lugar e que eles vão, sim, precisar mudar de comportamento.
No entanto, sabemos que isso não é fácil. Sabemos dos riscos e que muitas vezes o medo não passa, apenas ameniza, mas sabemos também que se não for agora, será quando?
Quer saber mais sobre viajar sozinha? Escute o podcast “Mulheres Pelo Mundo”.
https://open.spotify.com/episode/36YrbTCBxLa4rpaa8OqPEU
Você também pode conferir mais dicas de viagem para mulheres no site M pelo Mundo.