Puerto Williams: uma viagem ao vilarejo mais austral do mundo

Por: Redação

Entre a névoa que paira sobre as inóspitas falésias dos Dentes de Navarino, no arquipélago da Terra do Fogo, na fronteira da Argentina com o Chile, sobressai o telhado verde da única igreja de Puerto Williams, o vilarejo mais austral do planeta.

Vista da cidade de Puerto Williams, o vilarejo mais austral do planeta

A remota localidade chilena situada na Isla Navarino e em frente ao mar de águas calmas que banham as costas do Canal de Beagle é considerada o último povoado mais ao sul do continente americano, dez quilômetros mais ao sul do que a cidade argentina de Ushuaia, conhecida dos turistas brasileiros que, com a expansão das passagens aéreas para a Patagônia argentina, passaram a inundar a região.

Puerto Williams tem um ar de fim de mundo, de cidade do distante oeste, com ruas sem nome varridas pela brisa antártica e com grandes pedaços de terras vazias à espera de novas famílias. A metade de seus 2.200 habitantes são da marinha chilena que trabalham na base naval localizada no povoado. A outra metade se dedica ao turismo ou à investigação científica, já que a localidade se encontra em uma das últimas 24 regiões virgens do planeta: a Reserva de Biosfera Cabo de Hornos.

A cidade é considerada pelos chilenos o último povoado mais ao sul do continente americano

Puerto Williams x Ushuaia

Recentemente, Puerto Williams fez parte de uma discussão entre chilenos e argentinos pelo rótulo de cidade mais austral do mundo. Na Argentina todos dizem que é Ushuaia, um grande centro urbano com quase 60 mil pessoas às margens do Canal de Beagle e cuja economia depende, desde os anos 1980, quase inteiramente do turismo.

Segundo dados oficiais, em 2015 chegaram à cidade argentina 440 mil visitantes, a imensa maioria de países como Estados Unidos, Alemanha, França, Espanha e Brasil. Somente na última temporada de verão, no início deste ano, cerca de 280 mil pessoas desembarcaram em Ushuaia –uma média de 1.500 turistas por dia.

Ushuaia, conhecida como Fim do Mundo
Créditos: iStock
Ushuaia, conhecida como Fim do Mundo

Para atender a demanda, em Ushuaia há pubs irlandeses, restaurantes de comidas típicas de diversas partes do mundo, baladas, bancos internacionais e casas de câmbio. “A vida é bem agitada para uma cidade relativamente pequena situada quase no fim do mundo”, comenta o jornalista Guilherme Henrique, que viajou com a família para a região no último Natal. “É uma cidade cercada de montanhas nevadas. O vento, mesmo no verão, é gelado. O centro é movimentado, com agências de turismo, lojas de roupa de inverno e restaurantes”, continua.

Desde 2015 há voos diretos operados pela Latam saindo de São Paulo para o município argentino, estratégia da empresa amparada no interesse cada vez maior dos brasileiros pelas paisagens patagônicas. Apesar disso, 30% de todo o turismo local ainda é oriundo dos cruzeiros que atravessam o canal.

As casas multicoloridas de Ushuaia, na Patagônia argentina
Créditos: iStock
As casas multicoloridas de Ushuaia, na Patagônia argentina

No Chile, a concordância com a reivindicação argentina só aconteceu em 2005, quando o Instituto Nacional de Estatísticas do Chile elaborou um documento declarando que o Estado consideraria “cidade” apenas aglomerações humanas com mais de cinco mil habitantes. Como Puerto Williams possui metade disso, recebe o rótulo de “vilarejo”, pois, apesar da pouca densidade populacional, tem uma movimentação econômica significativa. De qualquer forma, os chilenos não deixam de afirmar que o povoado mais ao sul do planeta está em seu território.

“Houve algo com Ushuaia que o Estado chileno deveria imitar, uma preocupação em convertê-la em cidade, com uma funcionalidade definida e a aplicação de uma série de políticas públicas associadas a fortalecê-la que, no caso argentino, teve êxito”, explica o professor Goran Lausic, do departamento de História da Universidad de Magallanes, do Chile.

Puerto Williams fez parte de uma discussão entre chilenos e argentinos pelo rótulo de cidade mais austral do mundo

Para ele, se as autoridades do seu país se preocupassem com a região, podiam transformá-la em um grande assentamento urbano, assim como foi feito em diversas outras regiões “virgens” do território nacional. “É necessária a implementação de políticas públicas que apoiem um maior assentamento urbano e a presença de uma população civil, não militar”, completou.

Ao periódico chileno “Bio Bio”, o prefeito de Cabo de Hornos, Patricio Fernández, declarou que os moradores de Puerto Williams se sentem vivendo uma cidade. “Cada cidadão põe seu grão de areia no que é turismo, no que é pesca, na marinha. Nós somos uma cidade”.

A vida em Puerto Williams

Puerto Williams não existia há uma década. Hoje, sua jovem população, que se dedica à pesca de centollas e se orgulha do seu passado indígena, observa com esperança o potencial turístico de seu patrimônio cultural. “Aqui temos condições excepcionais para desenvolver as navegações e o turismo cultural”, contou o antropólogo holandês Maurice Van de Maele ao jornal espanhol ‘ABC’. “A vida cotidiana não é tão dura como muitas pessoas acreditam. As pessoas chegam e se apaixonam por esse lugar, pela paisagem, pelo clima, pela natureza. A distância se torna uma vantagem, não um inconveniente”, completa.

 

Puerto Williams fica em frente ao mar de águas calmas que banham as costas do Canal de Beagle

Entre as pequenas casas com portas abertas, de vez em quando se descobre um cavalo, uma galinha ou uma bicicleta sem correntes. Várias crianças brincam na praça central, dominada por um diminuto mercado. No ar flutuam as palavras do locutor da rádio local que se difundem graças a alguns alto falantes instalados no exterior do estabelecimento. “O futuro hospital de Puerto Williams se inaugurará nos próximos meses”, anuncia.

A poucos metros se encontra um restaurante de comida colombiana, um local sem janelas aonde asseguram que servem as melhores empanadas de centolla, uma espécie gigante de siri. Dentro, a cumbia e as luzes vermelhas aquecem o ambiente em que alguns turistas tomam cerveja. “É para lidar com a comoção que se produz ao desembarcar no puro confim do planeta”, diz um deles. Em Puerto Williams não há conexão com a internet, apenas linha telefônica.

Graças ao valor natural que guarda, o Cabo de Hornos, na chilena Punta Arenas, foi declarado Reserva da Biosfera pela Unesco

A maioria dos turistas compram passagens aéreas que saem de Punta Arenas, a 600 km, no território chileno. Outros saem de barco de Ushuaia, a turística cidade argentina às margens do Canal de Beagle, para quem Puerto Williams é apenas uma passagem, já que estão viajando para a Antártica ou para o Cabo de Hornos. A maioria dos viajantes chega ao vilarejo para recuperar as forças do trajeto antártico no próprio porto, onde um único barco os recebe – o “Micalvi”, um cargueiro branco e marrom aposentado depois de décadas navegando pelas águas da região.

A embarcação é hoje um equipamento flutuante do porto e oferece apoio logístico para navegantes e visitantes de todas as latitudes. Quando chega a noite, uma grande sala multiuso do Micalvi serve como bar cuja principal especialidade é o pisco sour –uma mistura de pisco, uma bebida típica sul-americana, e maracujá.

Foi também na região de Puerto Williams que desembarcou um ainda jovem cientista Charles Darwin, em 1830, para estudar as costas da América meridional a partir dos povos yaganes, indígenas sul-americanos cujos descendentes formam parte da população atual do vilarejo. Na mesma esteira de reivindicação de cidade mais austral do mundo há a tentativa de rotular os yaganes da mesma forma.