Região italiana da Toscana guarda tesouros medievais

Depois da viagem tranquila (Roma – Florença), com belas paisagens, a chegada à capital da Toscana requer esforço e paciência –para os desinformados. Tudo parece pequeno, meio claustrofóbico, ruas estreitas, trilhos e dificuldade para encontrar táxi– nem precisava, já que tudo é perto (as malas, as malditas malas…). Mas é só fachada. Aos poucos, a nuvem cinza dissipa revelando uma cidade de contos de fada.

Arquitetura imponente e complexa, que reúne no mesmo tablado todas as contradições humanas, Florença detém 30% do patrimônio artístico do planeta. O secular em sintonia com o moderno, o sagrado, o profano, o belo, o feio… A arte em toda sua expressão. Michelangelo, Giotto, Donatello, Botticelli, Brunelleschi e outros eternos deixaram preciosidades na cidade, considerada o berço do Renascimento.

Chegamos ao Hotel Number Nine, na Via dei Conti, antecipados para o check in. Deixamos as malas e saímos a desvendar os arredores. As ruas de pedra, as catedrais, os casarões em ocre e as tavernas nos transportaram imediatamente ao século 15 e à atmosfera da época, só rompida pelo murmurinho nas mesas dos bares e movimento de turistas, muitos turistas.

Sol e perfume

O sol escaldante é amenizado pela sombra dos telhados de casarões que, salientes, ladeiam as estreitas vias. Já nas grandes piazzas (praças) não tem para onde fugir. O jeito é se refrescar em algum bar, loja, igreja ou com os tradicionais gelatos. Turistas se concentram nos cartões-postais. Selecione um ou dois por dia e siga o mapa da aventura, em busca de novos tesouros. Foi assim que descobrimos a Aqua Flor, na Borgo Santa Croce.

Trata-se de uma perfumaria que atrai pelo cheiro, beleza, com dois grandes difusores e uma bicicleta na entrada, mas também pela construção rústica ao estilo Toscana. No interior, prepare-se para uma imersão no universo requintado de aromas em diferentes formas. Como se não bastasse, há um pátio secular com o tradicional poço ao centro e afrescos nas paredes de cal.

Claro que não se compara à opulência da Officina Profumo di Santa Maria Novella, na Via della Scala, o templo do perfume. Por isso mesmo é especial. Detalhe: o perfumista mora no edifício mas não fala com ninguém. E nem adianta insistir.

Hipnotizados pela experiência olfativa, seguimos imediatamente à propalada Novella, que fica no convento da basílica de Santa Maria Novella. Fundada em 1221, por frades dominicanos, as receitas estão vinculadas à higiene pessoal.

Em 1381, durante o período da peste bubônica, os frades desenvolveram uma fórmula à base de rosas considerada antisséptica. Foi um sucesso. Até hoje, eles vendem remédios para todos os males. Misto de museu, igreja e botica, o requinte está em tudo: nos azulejos, lustres, pinturas e até no design dos produtos. Um sabonete custa em média €10.

A ponte, o rio e o boneco

De volta às pernadas, porque Firenze é roteiro de muitas descobertas, fomos ao fim da tarde às margens do Rio Arno, próximo à Ponte Vecchio. As luzes naturais na paisagem lembravam uma pintura renascentista. Cena para toda a vida. Embriagados pelo sol poente –e uma garrafa de vinho branco–, avistamos uma simpática galeria já prestes a baixar as portas.

Vendo nosso entusiasmo a proprietária Joanna Adreani, nos deu passagem e pôs-se a explicar as principais obras expostas, com exclusividade. Disse que o objetivo era promover novos talentos italianos no cenário da arte contemporânea. Esculturas de Sergio Benvenuti e Vittorio Tessaro faziam parte da exposição. Galleria Mentana, na Piazza Mentana. Um luxo.

No trajeto deparamos com muitos Pinóquios (sim, o boneco narigudo nasceu na região) em vitrines, em especial na de Francesco Bartolucci, na Borgo dei Greci, onde um Pinóquio em escala grande dá as boas-vindas. Nas prateleiras, o boneco de Gepetto em todas as formas e tamanhos. Soube, depois, que naquele mês (julho), comemorava-se o aniversário dele –134 anos.

As cores do entardecer dão uma tonalidade romântica às obras de arte a céu aberto, que dobram até o mais firme dos homens. Some a isso o charme de lojas que mantém a tradição secular, como papelarias que vendem plumas com tinteiro, baralho com ícones medievais, porta-lápis artesanal e marcadores de livros antigos.

Na Piazza Duomo, degustando um sorvete da Baroncini Gelatos, circundamos admirados a grandeza da Santa Maria del Fiore, ou simplesmente Duomo. A catedral gótica, que demorou 600 anos para ser erguida, ostenta a maravilhosa cúpula de Brunelleschi. Já a praça em si, cercada de comércio (charretes, bares, sorveterias, lojas de roupa, tabacaria etc), é uma das maiores –e mais frequentadas. A fila para visita à catedral costuma ser grande e torturante– sob o sol fulminante.

Voltamos ao hotel com tontura e ‘antropofagia cultural’. Lembrei a tal Síndrome de Stendhal (tontura, taquicardia e confusão mental causado pelo excesso de beleza). A propósito, a Igreja de Santa Croce, onde Stendhal, o escritor francês, teve o surto, é magnificente e merece respeito. Lá estão os restos mortais de Maquiavel, Galilei, Michelangelo e uma série de lápides da nobreza dispostas no chão. Além de afrescos de Giotto, Taddeo Gaddi e acesso ao pátio do convento – como nos velhos tempos. Ufa! É assim mesmo.

Vênus e Vecchio

Talvez o tour cultural mais importante (ao menos para nós) de Florença seja à Galleria degli Uffizi, por tratar-se do maior acervo de pinturas renascentistas do mundo. Fizemos reserva desde o hotel com guia autorizado (inglês), bem cedo, na intenção de evitar filas que chegam a durar de duas a três horas. Deu certo.

A guia explica que as obras existem graças à última herdeira da dinastia Médici, Anna Maria Luisa Médici que, percebendo o avanço da família Lorena ao poder, fez um acordo para doar toda a coleção, desde que permanecesse na cidade.

O edifício é enorme e se for apaixonado pela história das artes vai precisar de, no mínimo, três horas para se deliciar com o acervo, disposto em 45 salas. No terraço do andar superior há lanchonete ao ar livre onde todos recarregam as forças. Os passarinhos sobem à mesa em busca de farelos e, sem medo, comem na própria mão.

É simplesmente maravilhoso estar diante de obras que estudamos e ouvimos falar a vida inteira. ‘O Nascimento de Vênus’ (Botticelli, 1485), ‘A Anunciação’ (Da Vinci, 1472), ‘Vênus de Urbino’ (Tiziano, 1538), ‘Madonna e Criança com Anjos’ (Lippi, 1455), ‘A Sagrada Família’ (Buonarroti, 1507) e tantas outras. Os Médicis eram amantes das artes e a maioria desses artistas teve patrocínio deles.

A última etapa da visita se dá no Corredor Vasariano, uma passagem de 1 km sobre o Rio Arno (Ponte Vecchio) que concentra obras e autorretratos de pintores europeus. A passagem foi construída para interligar o palácio dos Medicis (Pitti) ao ‘escritório’ (centro administrativo) sem que os nobres fossem obrigados a circular, com escolta, entre os simples mortais. Detalhe: não é aberto permanentemente ao público e o bilhete é mais caro (€45). A Vecchio foi a única ponte poupada pelos alemães durante bombardeios nazistas na segunda guerra mundial. As demais foram reconstruídas.

Como em todo o mundo, a escultura de David, de Michelangelo, é a mais vista em Florença. Tropeça-se em réplicas –e miniaturas– por todo canto. Mas a original, esculpida em 1504, está na Galleria dell’Accademia, a primeira academia de desenho da Europa, destinada a estudantes das Belas Artes. O entorno do prédio é cheio de lojas que vendem material de pintura. Entre outras preciosidades, lá estão ‘O Rapto das Sabinas’ (Giambologna) e ‘Madonna do Mar’ (Botticelli). Dê uma volta completa ao redor do monumental David e perceba as veias que realçam dos braços. Perfeita.

Mangiare

Comer na rua é cena comum na cidade. Um lanchinho aqui, outra ali e as divagações: ‘que ingrediente é esse?’, ‘que tempero é esse?’… Fomos parar no Mercato Centrale (Mercadão). Solte os cintos e todos os sentidos. Repleto de produtos típicos, o local é mais que um simples mercado. Deguste, saboreie, ouça, leia, se informe e compre, compre, compre. Nem preciso dizer que voltamos ao Brasil com uma mala repleta de temperos e vinhos.

Além das lojas que representam a gastronomia regional/artesanal –cujos proprietários foram submetidos a uma rigorosa seleção–, há escola de culinária, enoteca (com degustação de vinho), pizzaria, gelateria, queijaria, padaria (forno), peixaria, trufaria e outros ‘ias’ de sobra. Há, ainda, biblioteca e apresentações de música clássica.
Na arquitetura, uma esplêndida combinação do séc. 19 com o design moderno. Em algumas das entradas (existem quatro), como na Via dell’Ariento, a rua é tomada por barracas de imigrantes (indianos, paquistaneses…) que vendem artigos de couro, principalmente bolsas, por um preço bom (entre 30 e 120 Euros). Tudo legalizado. Pechinche.

Hobbits

As visitas que planejamos às cidades medievais não saia da cabeça. Com mapa em mãos, decidimos começar por San Gimignano, há 20 km de Florença. Acordamos cedo, pedimos o carro (que fica estacionado em outro prédio) e, confiando no GPS, partimos. A velocidade máxima no centro de Florença é 20 km –sem contar o sentido de circulação em algumas vias que muda durante a semana. Fora da cidade, seguindo a voz portuguesa na gravação (‘próxima rotunda, vire a segunda à direita…’), seguimos uma estrada de terra e nos vimos perdidos e sós naquela paisagem onírica. Nenhum ser vivo para dar informação.

Igreja abandonada na estrada que leva à San Gimignano[/img]

Mal saímos e já resvalamos por vielas, casas de pedra, catedrais, torres, arcos, telhados, ao estilo ‘Os Hobbits’ ou contos de Paulo Coelho. Sentamos em uma das poucas mesas de um pequeno restaurante na própria rua, ou melhor, passagem. Pedimos vinho da casa e um prato indicado pelo garçom. Não lembro bem os ingredientes mas nunca comi nada igual. Havia um suflê de queijo e tubérculos (marinados em azeite) assados no forno de barro.

Espetacular. Enquanto esperávamos, um artista, culto e educado, se aproximou e pôs-se a pintar nosso retrato.
Outrora rica, graças ao comércio de produtos agrícolas e de tecidos, San Gimignano teve seu apogeu entre os séculos 12 e 13, antes de ser assolada pela peste negra. Dizem que os comerciantes desviavam a rota para passar a quilômetros de distância do lugar. Observava as ruelas, as casas –intactas– tentando imaginar o sofrimento da população.

Praça central de Monteriggioni[/img]

Pôr do Sol

Voltamos boquiabertos à Florença, ao cair da tarde. O sol resplandecia a bela fauna e, novamente, tivemos dificuldade para chegar ao hotel. Sorte não ter recebido multa de trânsito. Circulei na contramão em algumas vias, as pessoas advertiam levantando os braços e nós, coitados, só no ‘scusa’, ‘perdono’. Um horror.

Com tantas atrações legais na cidade, decidimos retomar o tour às cidades medievais quando fôssemos para o Sul. Como as distâncias são curtas não haveria problema e Sinalunga, nosso próximo porto, indicava ser uma cidadezinha tranquila.

Passamos a questionar os florentinos sobre lugares pouco conhecidos ou preferidos deles. Nem precisamos sair do hotel. Os próprios garçons, o concierge, a recepcionista já abasteciam nossa curiosidade. O pôr do sol do mirante da Piazzale Michelângelo, por exemplo, é imperdível. Vê-se a cidade encandecer e as primeiras luzes artificiais refletidas nas águas do Arno.

Partimos de Florença com o coração apertado e promessas de que voltaríamos em breve. Perdemo-nos novamente à saída da cidade mas àquela altura nada mais importava. No fundo, queríamos mesmo ficar perdidos para sempre em meio àquele tesouro arquitetônico.

Por Leonardo Raposo, do blog Vila Madalena