O desafio de cruzar o Salar de Uyuni, na Bolívia, de muletas
O início parecia despretensioso
O início parecia despretensioso. O primeiro destino era Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, a apenas 416 metros acima do nível do mar. Até aí, o único obstáculo ao caminhar pelas ruas da cidade eram as muletas, que insistiam em esbarrar nas cholas –mulheres indígenas conhecidas pelas vestimentas tradicionais– que, na maioria das vezes, saem a carregar em suas costas, roupas, utensílios domésticos e, claro, crianças.
Fomos eu e uma amiga, que me acompanhou nessa viagem, até a rodoviária encontrar um jeito de ir para a próxima cidade. “Sucre! Sucre! Sucre!”, gritam os funcionários das companhias de ônibus. Sucre está a 2.810 metros de altitude, e é considerada uma das cidades mais altas da América do Sul. Desde Santa Cruz de La Sierra são 15 horas –a maior parte do trajeto em estrada de terra. Viramos a noite no caminho.
No terminal, encontramos dois irmãos brasileiros que compartilhavam do mesmo roteiro. Juntos, bolamos uma estratégia para eu conseguir subir no ônibus. Isso porque o primeiro degrau do veículo ficava na altura do joelho. Eles seguraram as muletas, a mochila, sentei no degrau e me apoiei em uma espécie de corrimão que havia ao lado para me impulsionar e ficar em pé de novo. Claro que os novos amigos deram um empurrãozinho, literalmente. Com o ar já ficando rarefeito, parecia que eu tinha acabado de escalar uma pequena montanha.
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Apesar de todos os atrativos de Sucre –além de ser a capital oficial da Bolívia, lá é possível encontrar sítios arqueológicos onde foram descobertas pegadas e ossos de dinossauros– não paramos em lugar algum e fomos direto para Potosí. Aí sim, a 4.067 metros acima do nível do mar, um leve passeio pelas ladeiras com a mochila de 80 litros –levando em consideração que meu gasto energético pode ser até três vezes maior, se comparado a uma pessoa sem deficiência– era a conta de dar três passos e já estar sem ar.
Além disso, estávamos em pleno fevereiro e o carnaval da região é marcado por crianças jogando água e sabão através de armas de brinquedo. Não importasse quem estivesse pela frente. Nem mesmo o par de muletas, que tanto me ajuda a ser absolvida de situações perigosas, passou ileso.
Pior para mim que não conseguia correr das criancinhas em polvorosa. O jeito foi rir com elas, ameaçar a me defender com as “armas” que tenho, rir mais um pouco e sair da praça na velocidade máxima que conseguisse –de três em três passos. Voltamos para a rodoviária e rumamos para duas horas e meia de estrada até Uyuni.
Dignidade já
Chegamos no meio da noite, sem reserva de hotel. Que erro. Apesar do verão, o vento gelado que vinha do topo da Cordilheira dos Andes deixou claro que não seria uma noite fácil. Pedimos para um taxista nos acompanhar na saga de encontrar um canto digno para dormir –sobre digno entende-se uma cama e um banheiro. A essa altura, já tínhamos rodado 850 km sem parar! Dormindo nos ônibus há quase três dias e… sem banho. Surgiu aí o grande bordão da viagem, estendíamos a mão pedindo “dignidade já!”
Acontece que, por ali, hotéis com chuveiro elétrico são raros e estavam esgotados devido à alta temporada. Encontramos uma pousada que prometeu ter banho quente e a exata quantidade de vagas que precisávamos. Lindo.
O aquecimento do chuveiro vinha por meio de um botijãozinho de gás que deixava o banho, com sorte, menos frio. No chão, um balde com água morna já anunciava que iríamos usar uma caneca pra completar o serviço. Como não tenho equilíbrio suficiente para agachar várias vezes, peguei uma cadeira, me sentei e tomei minha ducha de balde.
Deficiente sobe em pedras?
No dia seguinte, o Salar. Encontramos outros dois brasileiros e fechamos um 4×4 através de uma agência. O pacote dá direito a três dias por diferentes desertos até chegar ao Chile. Alugamos o carro e o guia vem embutido. Passamos por vulcões, desertos de areia, de pedras, de sal e muitas lagunas.
Em uma das paradas para “sacar” fotos, ficamos em frente a grandes estruturas rochosas. Todos que estavam no veículo subiram. Fui até onde o relevo permitiu. Subi algumas pedras, desviei de outras e parei em um canto. Recostei a muletas em uma rocha, e prostrei a olhar para cima como uma criança diante de um paredão inacessível. Fiquei na tentativa de acompanhar, em vão, até onde os que podem caminhar sem auxílio conseguiriam chegar. Por dentro, frustração, angústia e uma vontade danada de estar lá em cima.
De repente, Sandro, um dos meninos do carro, voltou e disse: “Aah…você vai subir sim!”. Me colocou em suas costas e, quando dei por mim, estava no alto das rochas, com uma vista incrível para os Andes.
Nesse dia, percebi que se quisesse aproveitar o máximo de qualquer experiência pelo mundo, teria de deixar orgulho e vaidade de lado e fazer algo incrível: pedir ajuda. Me recordo das inúmeras vezes que deixei de subir em uma pedra, fazer uma trilha, caminhar por uma praia, por parecer que sou muito “deficiente”, por medo do que as pessoas iriam pensar.
Ser independente nada tem a ver com fazer tudo sozinho. É reconhecer seu corpo, entender seus pontos de equilíbrio e saber que às vezes você precisa de um empurrão, uma cadeira ou dos braços de alguém que você acabou de conhecer. É entender a hora em que se precisa do outro. Ainda que eu embarque sozinha, não conseguiria desbravar o mundo sem ajuda –sendo uma pessoa com deficiência ou não. A gente não precisa quebrar nossas muletas. A gente só precisa aprender a andar com elas.
Relato por Jéssica Paula
Acompanhe as minhas viagens em @ajessicapaula