Vila Itororó, em São Paulo, se transforma em centro cultural provisório
Relato por Eduardo Vessoni, do site Viagem em Pauta
Vila Itororó era terreno proibido para mim, uma criança de classe média criada em um edifício da rua do quarteirão seguinte, encarcerado detrás de portões elétricos com lanças na ponta.
Lá do alto, no nível da rua Martiniano de Carvalho, uma escadaria longa dava acesso àquele mundo particular por onde haviam passado, dizem, a Princesa Isabel e festas eram realizadas com a presença de figuras como Mário de Andrade, escritor que considerava o idealizador da Vila um visionário. Por aquelas mesmas escadas, Elis Regina e Adoniran Barbosa também passeariam de braços dados, entre crianças jogando bola sobre o chão já desgastado.
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Idealizada pelo imigrante português Francisco de Castro, nos anos 20, a Vila Itororó foi erguida com material reaproveitado de edifícios demolidos de São Paulo, uma ideia extravagante que deu ao local ares de arquitetura surrealista como os restos do antigo teatro São José que se mesclaram a outros pedaços de história em forma de sucata.
A Vila Itororó foi construída em homenagem ao centenário da independência do Brasil, em 1922, e seu nome é uma referência à fonte homônima que continua no local.
No canto esquerda da vila, o casarão em forma de palacete servia como uma espécie de terraço que se debruçava sobre as outras 36 construções, onde moravam os inquilinos de Castro.
E da sacada da casa do meu avô José Vessoni, morador da Vila, na Bela Vista, estátuas me observavam com olhares fixos que pareciam querer contar histórias, enquanto o tempo implacável lhe arrancava pedaços.
Era na sala de ares escuros e estátuas na porta da ‘Casa das Carrancas’ que eu passava tardes com aquela figura pançuda, careca e bonachona, ouvindo um disquinho vermelho que insistia em repetir na vitrola “A canoa virou/Pois deixaram ela virar/Foi por causa de Maria/Que não soube remar”.
No chão daquele casarão na entrada direita da rua Martiniano de Carvalho, dois leões na porta (que a mulher do meu avô insistia em dizer que tinham sido roubadas dali para decorar uma casa da rua Major Diogo), recepcionavam quem chegava no imóvel, onde eu rodava sobre o piso puído de madeira, imaginando essa história de ser um peixinho que soubesse nadar para tirar a Maria do fundo do mar.
A mulher do meu avô era Meire (pelo menos era assim que todo mundo a chamava), mas ela dizia que seu nome verdadeiro era Mariá. E eu me lembro da Mariá me levando para o fundo do mar de casinhas históricas, na parte mais funda do terreno, onde eu brincava com vizinhos. Tânia e o irmão Fabinho são alguns dos poucos nomes que lembro da época.
Mas por ali passaram também Zilás, Marias, Severinos, Antônias, Zumaias e Tercinas.
Eu tomava banho no tanque do lado de fora, pois me assustava com a ideia de me lavar no banheiro escuro com um tambor de gás que aquecia a água.
Da sacada da segunda casa onde meu avô morou na Vila, também nos anos 80, eu acompanhava a degradação da Vila Itororó, no Bixiga, em São Paulo.
As águas da piscina que eu via no fundo da casa já não tinham os mesmos tons da época em que fora inaugurada como “a primeira piscina particular com uso coletivo de São Paulo”; os pilares que sustentavam o palacete imponente da entrada esquerda da Vila davam sinais de fraqueza; e aquelas casas erguidas, entre 1916 e 1922, eram um cortiço degradado e esquecido, entre edifícios novos que engoliam aquele histórico conjunto residencial de aluguel.
E agora, três décadas depois, é a própria Vila que dá seu último respiro e, assim como a Maria tenta sair do fundo do mar, o terreno profundo de mais de 7 mil m² cavado às margens do Ribeirão Itororó, soterrado sob a apressada avenida 23 de Maio, começa a dar lugar a um centro cultural e gastronômico que está prometido para 2018.
Declarada “Patrimônio Histórico de São Paulo”, a Vila Itororó, por fim, se transforma em um centro cultural provisório que dará início ao processo de revitalização que começou, em 2014, com a limpeza e estabilização das construções da vila, e seguirá até 2018 com a restauração de casas, e a criação de ateliês e alojamentos, cuja liberação para uso será de acordo com a conclusão das intervenções em cada setor.
Segundo informou a Prefeitura de São Paulo, o projeto de restauração receberá cerca de R$ 50 milhões de investimentos, financiados por meio da Lei Rouanet, e é baseado na proposta dos arquitetos Décio Tozzi e Benedito Lima de Toledo.
A reforma inclui um complexo cultural formado pelo galpão, onde hoje funciona o canteiro de obras, por 10 casas restauradas e pela piscina. Estão planejados também um bicicletário, uma horta e uma cozinha abertas ao público, cujos acessos serão feitos pelas quatro ruas que envolvem a construção (Pedroso, Maestro Cardim, Monsenhor Passalaqua e Martiniano de Carvalho).
Conhecido como “canteiro aberto”, o projeto de revitalização que já conta com um centro cultural temporário no próprio local das obras é considerado um diálogo inédito entre a renovação de um bem público e a sociedade, onde os trabalhos por trás dos tapumes de isolamento dão lugar à reflexão sobre os usos do espaço público, como a visita ao pátio da Vila seguida de um workshop de memória e estêncil que aconteceu no local, no último fim de semana.
De acordo com o cronograma oficial, divulgado no site da prefeitura, a entrega da Vila Itororó renovada será feita por partes: abertura do canteiro de obra, criação de um centro cultural temporário e abertura do acesso à praça central da Vila (2015); entrega de quatro edificações renovadas (2016); outras cinco, em 2017; e a entrega final, marcada para 2018.
A gente só espera que a conclusão das obras seja antes da Maria sair do fundo do mar. E enquanto a gente espera, ficam a curiosidade e a nostalgia escondidas por detrás dos tapumes prateados que escondem um pedaço da história da cidade (e de muitos moradores da Bela Vista).
Eduardo Vessoni é editor do site Viagem em Pauta