Violência e assédio contra LGBTs aumentam no Carnaval
Segundo pesquisa do #VoteLGBT, 61% das pessoas desse grupo declararam ter sofrido assédio sexual durante esta época do ano
Joh, uma mulher trans, foi vítima de dois casos de assédio sexual em um mesmo bloco, onde estava com sua prima e uma amiga, que é travesti. Elas dançavam axé quando chegou um cara e falou: “se tivesse buceta eu pegava”. Após ela virar e continuar a se divertir, o amigo do homem disse: “se tem buraco eu estou comendo”. Em seguida, ela foi pegar uns abadás que estavam sorteando e, neste momento, ele voltou, a abraçou pelas costas e começou a “sarrar”. “Falei para me soltar, e minha amiga também gritou, mas ele apenas respondeu: ‘dessa noite você não escapa de mim’. Eu dei um empurrão nele e fui para o fundo do bloco. Lá, outro senhorzinho me pegou por trás enquanto eu dançava funk. Rapidamente eu saí e ele ficou mexendo no pênis”, relata.
Marcos, que é um homem gay, foi ao Carnaval de 2017, usando um maiô pela primeira vez. Quando estava em um bloco LGBT com seus amigos, dançando e se divertindo, um cara simplesmente bateu em sua bunda. Sem reação com o ocorrido, o máximo que ele conseguiu fazer foi olhar com reprovação para o assediador. “Desde então, sempre sinto que, quando estou em um ambiente com menos roupa, alguém pode entender isso como convite. E quando somos negros a questão é ainda maior.”
Mariana sofreu uma situação de LGBTfobia durante a folia no Ceará. “Lá, há uma brincadeira que é colocar coisas dentro do ovo e deixar apodrecer. Aí tem o ‘mela mela’, que é você brincar o Carnaval com o ovo e a farinha. Eu estava em um bloco com uma ‘gata’, dançando, e, quando nos beijamos, jogaram ovo na gente. Foi bem foda, porque aí percebemos que o público era meio ‘hétero’ e a gente não teve como reagir. Foi bem constrangedor”, conta.
Os três casos narrados acima ocorreram em lugares e anos diferentes, mas evidenciam que o assédio sexual e a violência contra LGBTs aumentam no período do Carnaval. Segundo uma pesquisa do #VoteLGBT, realizada em 2019 com 1214 entrevistados em blocos de São Paulo, 50% das pessoas declararam já ter sofrido violência motivada por LGBTfobia. No Carnaval, os ataques a essa comunidade crescem: 61% declararam ter sofrido assédio. Entre não-LGBTs, o número cai para 42%.
Entre as práticas mais informadas de assédio na pesquisa, tanto para LGBTs como para não-LGBTs, estão “corpo tocado sem permissão”, com 73% dos entrevistados, seguida de “encoxamento”, com 54%, e “beijo forçado”, com 40%. “O debate sobre o corpo é central na luta LGBT+. Os assédios mais relatados pelas pessoas, o que inclui de forma substancial as mulheres (LGBTs ou não), envolvem violações físicas”, ressalta a pesquisa.
Apesar dos casos de violência, desde 2019, a Catraca Livre, em parceria com a Prefeitura de São Paulo e Rua Livre, realiza a ação Anjos do Carnaval, como parte da campanha #CarnavalSemAssédio, criada em 2016. A força-tarefa capacita voluntários e voluntárias para atuar contra o assédio em blocos de rua e no acolhimento das vítimas. Saiba mais sobre a iniciativa deste ano neste link!
Carnaval da diversidade e sem violência
José Alberto Roza, que está à frente do Love Fest, conta que o bloco surgiu em 2017 para promover a ideia de que se possa celebrar a diversidade nas ruas de São Paulo, não só entre LGBTs, mas a diversidade de corpos. “Ele surge para falar de negritude, de LGBTs, principalmente das pessoas trans, de corpos dissidentes, do corpo gordo, do corpo com deficiência… A ideia é tirar do Carnaval o padrão estereotipado e contemplar essa diversidade tanto na equipe do festival, como no público, que é de maioria LGBT”, afirma.
De acordo com José Alberto, o combate à LGBTfobia sempre foi uma preocupação do bloco, tanto que, no ano passado, tivemos a presença dos Anjos do Carnaval para acolher as vítimas. Mas, o que eles buscam fazer é antecipar essas possíveis situações de violência para evitar que elas ocorram, tanto no Carnaval, como em outros espaços. “A questão do assédio sexual é trabalhada antes com a equipe de segurança e a de corda, para que a própria equipe não cometa qualquer LGBTfobia e se atente para o que acontece, fazendo intervenções quando necessário”, diz.
Além disso, os organizadores do Love Fest observam, de cima do carro, o que ocorre na rua e ainda falam frases, de tempos em tempos, contra essas violências, como racismo, sorofobia (violência contra pessoas vivendo com HIV), LGBTfobia, gordofobia e xenofobia. “Por exemplo, colocamos 5 pessoas LGBTs, que representam a diversidade, para fazer discursos em cima do carro.”
Assédio inerente ao machismo estrutural
Para o responsável pelo Love Fest, a violência de modo geral é menor dentro dos blocos LGBT, pois as pessoas procuram esse tipo de festa por prezar pela liberdade e resistência. Em contrapartida, na questão do assédio sexual, ele ressalta que a gente precisa entender que estamos falando de algo inerente ao machismo estrutural.
“O machismo estrutural está tanto na população heterossexual, quanto na LGBT. A população LGBT não está livre disso. Então, sim, eu posso ter homens gays passando a mão em outros homens gays e isso ser entendido como assédio. Eu posso ter uma mulher lésbica que também participa de uma situação de assédio. Eu posso ter um homem gay sendo transfóbico com uma travesti ou mulher trans”, explica José Alberto.
Já Alberto Pereira Jr., fundador do bloco Domingo Ela Não Vai, relata que já sofreu assédio no Carnaval e precisou barrar homens e mulheres que queriam passar a mão em sua bunda, puxar o cabelo ou pegar no braço. “Nunca foi algo mais grave que gerou trauma, mas tive que lidar. E assim, no Carnaval as pessoas bebem demais e acham que, porque estamos fantasiados, com poucas roupas, podem chegar e passar a mão. Elas perdem a noção por estarem em uma festa, numa multidão”, opina.
O criador do bloco ressalta que a questão do assédio sexual é debatida no meio LGBT, mas acaba ficando em segundo plano, pois a LGBTfobia é muito mais forte para este grupo. “Acho que isso acontece porque a comunidade sofre muitos outros casos de violência por parte de heterossexuais. Mas é importante que a gente fale da questão do assédio, já que ninguém está livre disso”, conclui.
O que os blocos podem fazer
Em relação ao que deve ser feito pelos blocos para evitar preconceito ou assédio, José Alberto ressalta que é preciso evitar músicas que tenham conteúdo racistas, LGBTfobicos ou de qualquer outra violência, que os organizadores façam falas ao longo do trajeto contra essas situações, e, acima de tudo, que tenha alguém em cima do trio para se atentar a qualquer caso mais grave.
“Não acho que tenha uma necessidade reiterada de se parar o carro. Em alguns momentos pode parar o som, mas, acima de tudo, é preciso que a segurança esteja atenta faça intervenções”, completa.
Alberto Pereira Jr., do Domingo Ela Não Vai, criado em 2015, cita as mesmas atitudes dos blocos para coibir situações de assédio e LGBTfobia. Seu bloco tem um público bastante diverso e misturado, pois o axé atrai todo mundo: LGBTs, heterossexuais, famílias, etc.
“Primeiro, o essencial é estar com uma equipe de cordeiros e seguranças bastante treinada para ficar de olho ao redor do trio elétrico. A gente também sempre faz avisos durante os desfiles se vimos que está acontecendo alguma coisa e ainda apoiamos todos esses anos campanhas contra o assédio, como a da Catraca”, reitera.
“É uma questão que está no nosso DNA: a gente está lidando com corpos, e corpos distintos, corpos livres. O Carnaval é uma festa de liberdade. A minha liberdade termina quando eu interfiro na sua. Nunca chegou para mim, nesses 4 anos de desfile, nenhum caso grave de assédio. Não temos esse histórico”, finaliza Alberto.
Todos os conteúdos da campanha #CarnavalSemAssédio são apoiados oficialmente pela 99.
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