“Agora consigo realmente ver o que é viver de verdade”, conheça influenciadora que nasceu na favela e hoje estuda na USP
Jovem ganhou visibilidade ao mostrar ser possível estudar na USP morando na favela
Luana Nascimento, 23, nasceu na favela Pedreirinha, em Mauá, e estuda Estatística na Universidade de São Paulo (USP). A jovem utiliza as redes sociais para mostrar a realidade de morar na favela e estudar na melhor faculdade da américa latina.
A influenciadora está no quinto ano da graduação e acumula mais de 500 mil seguidores nas redes sociais (@luhclaro). Ela conta que não imaginava fazer tanto sucesso. “Quando eu postei o vídeo falando pro pessoal me seguir, que viralizou, era mais na intenção de completar só os meus seguidores, mas eu nunca imaginei que fosse sair da minha bolha do TikTok”, relata Luana.
A mauaense tem três irmãos mais velhos e cresceu em um lar de muita vulnerabilidade social. “Meu pai tem esquizofrenia, ele foi diagnosticado quando eu tinha três anos, então já cresci no meio disso”, relembra. “Desde então, meu pai começou o tratamento e a minha mãe sempre vivia em psiquiatra, em psicólogo, em médico, então eu cresci com a minha mãe ausente”, acrescenta a influenciadora.
- BlaBlaCar comemora 9 anos no Brasil com mais de 2 mil e 500 passagens de ônibus por menos de R$ 1
- Novo estudo revela que canabidiol auxilia no tratamento de autismo
- Ghosting: o que explica o sumiço repentino numa relação e os sinais que o antecedem
- Livro traz a ancestralidade da culinária popular brasileira e alerta sobre os perigos da crise climática para a humanidade
Ela relata que alguns anos depois sua irmã foi diagnosticada com epilepsia, tinha muitas convulsões e sua mãe precisava cuidar dela também. “Por conta disso ela nunca pôde trabalhar, meu pai recebia algum benefício na época, que era pouquinho e sempre era cortado porque tinha que ficar fazendo perícia. A gente cresceu assim, dependendo dos outros, de doação, quase não tinha roupa, calçado e eu tive muita insegurança alimentar”, conta.
Como tudo começou
Luana, para fugir de sua realidade, passava muito tempo na rua brincando e também usava o estudo como um refúgio. “Eu gostava muito de ir para a escola, acho que tudo isso gerou uma carência muito grande em mim, então eu achava conforto na escola”, lembra.
“Eu era muito estudiosa e os meus professores percebiam isso, então eles me acolhiam, me ajudavam da forma como eles podiam, desde muito pequena. Então acho que foi por isso que eu me interessei tanto pelos estudos, sempre tive sorte que foi isso que supriu a minha carência porque geralmente é outro caminho, infelizmente”, reflete Luana.
“Eu não tinha ouvido falar muito sobre vestibular, sobre faculdade, porque não tem muito essa cultura na escola pública. No segundo ano do ensino médio, uma professora de sociologia me perguntou ‘o que você vai fazer?’ Aí virou uma chave na minha cabeça. Não sabia nem como funcionavam os vestibulares direito, mas foi aí que eu comecei a pensar”, esclarece a estudante.
“Essa professora me perguntou ‘por que você não faz estatística? Você gosta de exatas’. Eu fiquei com isso na cabeça, mas eu nunca tinha ouvido falar desse curso, fui pesquisar e eu lembro que eu gostei. Só que na minha cabeça não era para mim, eu não passaria na faculdade pública”, conta Luana.
Virada de chave
A estudante relembra que, quando estava no terceiro ano do ensino médio, um garoto foi dar uma palestra na sua escola, para incentivar os alunos a prestarem o vestibular. “Ele tinha estudado na minha escola, e ele tinha feito USP. Ele começou a contar a história dele e eu achei que ele ia falar que tinha feito medicina, engenharia, alguma coisa assim, e ele tinha feito estatística. Qual a chance dele vir dar uma palestra aqui, sobre um curso que ninguém conhecia?”, brinca.
“A partir daí, eu decidi que queria prestar esse curso. Já tinha passado as isenções no vestibular, eu não tinha dinheiro para pagar, então os meus professores fizeram uma vaquinha. Só que a USP nunca passou pela minha cabeça, porque eu pensei ‘a USP realmente é um sonho longe, jamais vou entrar lá’. Eu até ouvi de pessoas que, realmente, não era pra mim, então eu decidi prestar a Unicamp. Prestei e passei na segunda chamada”, conta a influenciadora.
“Eu estudei mais de um ano sozinha, porque eu não tinha como pagar cursinho nem nada. Estudava pelas aulas do YouTube, do jeito que eu podia e refazia muitas provas antigas. Tinha que, pelo menos, pagar alguém para corrigir as minhas redações, então eu pagava uma plataforma que, por vinte reais por mês, corrigia meus textos. Eu não tinha mesa, usava a tábua de passar roupa da minha mãe para estudar, então era muito complicado”, explica.
Muitas dificuldades
Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luana também enfrentou diversos desafios, mas contou com a ajuda de uma outra estudante. “Eu não tinha vaga ainda na moradia e estava esperando sair os auxílios. Uma menina ofereceu uma vaga para mim, ela providenciou tudo, a gente virou muito amiga. Eu não tinha acesso ao bandejão ainda, então ela conseguiu o cartão de um amigo para eu não passar fome, ela me deu até livro de cálculo, me acolheu muito”, recorda.
“Infelizmente, ela faleceu ano passado, vítima de leptospirose. A rua dela inundou, devido a enchente, e ela ficou em contato com a água ajudando os vizinhos. Eu sofri demais quando ela faleceu, acho que se não fosse ela, eu não tinha nem começado. Eu teria voltado para casa e nem tentado na universidade”, lamenta a estudante.
Luana ficou alguns meses na Unicamp, mas por causa das dificuldades acabou desistindo. “Eu estava passando muitas necessidades ainda, não tinha dinheiro para voltar para casa porque era muito longe e meus pais não podiam me ajudar, então eu acabei desistindo e larguei tudo”, conta.
Finalmente na USP
“Eu voltei para Mauá e tive que ir trabalhar de telemarketing, mas eu fiquei muito infeliz. Euomecei a pensar de novo nessa ideia de faculdade, me organizei e comecei a estudar, por mais um ano de novo, para a USP, só que agora eu trabalhava. Eu estudava de manhã antes de trabalhar e também depois que eu chegava em casa, às vezes até no trem”, relata a influenciadora.
“Saiu a primeira chamada da USP eu não passei, saiu a segunda chamada eu não passei também. Primeiro eu passei, na verdade, na USP São Carlos e eu não tinha visto, eu achei que eu tinha passado aqui pra São Paulo. Eu me pintei toda, participei da semana de recepção sem ser caloura. Uma semana depois eu passei na última chamada, na última vaga”, pontua.
O início na USP também não foi fácil e, com a pandemia, ela não conseguiu cursar. “Eu passei fome a minha vida inteira, então eu não imaginava que eu também passaria fome depois que eu entrasse na universidade porque é a melhor universidade da América Latina”, desabafa. “Teve um mês de aula e entrou a pandemia. Eu estava num ambiente que não era muito propício para estudar, então o primeiro semestre eu não consegui cursar, não tinha internet”, conta.
Isso só mudou quando um outro aluno da sua turma soube de sua situação e lhe deu um notebook de presente. “A partir daí eu consegui começar a cursar o que eu podia. Não conseguia cursar todas as matérias do semestre, mas eu ia fazendo uma, duas no máximo, pra não ser jubilada”, relata a jovem.
“Quando voltaram às aulas presenciais em 2022, eu achei uma vaga na moradia em um apartamento de dois meninos, para ficar até sair minha vaga. Mas não tinha nenhum móvel no quarto, eu comecei a dormir no chão em um colchão fininho que eles me emprestaram. Meu quarto era muito mofado, entrava água quando chovia, era muito ruim e eu comecei a ficar com pneumonia”, relembra Luana.
“Eu escolhi a moradia, então não tinha direito a mais nenhum auxílio, só o bandejão mesmo e não era o suficiente porque eu não conseguia comer no bandejão sempre. Eu comecei a passar fome de novo, acho que a USP foi onde eu mais passei fome, mais do que na Unicamp. Não tinha nenhuma renda, eu ficava guardando pãozinho que dava no bandejão pra ter o que comer de noite”, desabafa a estudante.
Devido aos problemas, Luana começou a ir mal na faculdade e pensou em desistir novamente. “Eu fui procurar um professor para pedir ajuda, pedir uma bolsa. Expliquei a minha situação e ele disse que ia ver se podia me ajudar. Esperei três semanas e quando já estava arrumando minhas coisas para ir embora, chegou um e-mail dele falando que tinha conseguido uma bolsa pra mim de pesquisa. Isso me fez permanecer na faculdade e eu comecei a ir bem nas matérias. Quando você tem uma segurança, você consegue estudar”, defende.
Ajudas que mudaram tudo
A jovem, até os 19 anos, não tinha os dentes da frente e sofria muito com isso. Ela decidiu procurar um vereador da sua cidade para pedir ajuda, que a mandou para uma clínica. “Eu fui, isso foi bem no dia que eu passei na USP, quando eu estava indo pra lá eu vi meu nome na lista, cheguei na clínica chorando. A doutora avaliou o meu caso e me deu todo o tratamento de graça porque ela é irmã do vereador que eu pedi ajuda”, conta.
Uma das donas da clínica se compadeceu com a história dela, pois seu filho também estudou na USP. “Depois, ela conheceu a minha história, eu contei pra ela as dificuldades que eu estava passando na moradia e ela resolveu me dar um auxílio em dinheiro até eu me formar, ela me dá essa bolsa até hoje”, relata.
Porém a saga da jovem em encontrar um lugar melhor na moradia continuava. Até que outras alunas ofereceram uma vaga. “Elas fizeram entrevista comigo e com outras meninas. Passou um mês e elas me falaram, ‘a gente quer que você fique com a vaga’. Eu vim morar aqui no bloco B e depois que eu mudei pra cá, minha vida melhorou muito”, comemora a estudante.
Trabalho com a internet
Luana conta que começou a produzir conteúdo na internet porque não encontrava ninguém falando sobre como é a moradia da USP. “Tem pessoas como eu, que não sabem muito como funciona e não tinha um vídeo explicando. Eu sempre gostei muito desses vídeos de rotina, então eu comecei a mostrar a minha aqui. Por mais que eu passei muitas necessidades, eu sempre amei morar aqui. Tem gente que não sabe nem o que é a Faculdade Pública, muito menos que elas podem morar aqui de graça”, relata.
“No começo, eu não ganhava com isso, tinha 9 mil seguidores. Ano passado, no Natal, eu estava na minha casa em Mauá, e estava só eu e minha mãe. A gente não conseguiu comprar nada pra gente comer e foi uma noite muito triste. Eu fiquei com muita raiva por ter que passar por tudo isso, então eu decidi fazer um vídeo de como que era a minha casa na favela, de como era a minha situação. Eu precisava monetizar no TikTok e para monetizar faltavam mil seguidores”, recorda a estudante.
O vídeo viralizou e, a partir daí, a vida da jovem mauaense mudou. “Eu postei o vídeo com muita vergonha, porque eu acho que ninguém quer postar um vídeo se expondo dessa forma, mas esse vídeo viralizou. Quando eu acordei no dia seguinte, meu celular tava travado, tinha 8 milhões de visualizações, tava com 140 mil seguidores. Eu fiquei muito chocada”, brinca Luana.
Hoje, a estudante usa as redes sociais para mostrar a sua realidade e realiza palestras para incentivar outros jovens. “O primeiro convite que eu recebi foi para uma ETEC. Eu fui lá e eles estavam nem aí, mas eu comecei a contar minha história, sobre a USP e aí eles ficaram vidrados. Eu achei isso muito legal e no fim, fiquei mais umas duas horas para responder a perguntas deles”, comemora.
“Essa parte pra mim é fundamental no meu trabalho, com certeza. É realmente levar esse conhecimento porque pelo menos uma pessoa eu sei que eu vou atingir. Para mim, é muito importante esse trabalho que eu chamo de trabalho de base. Conversar com essas pessoas que realmente têm que ser atingidas porque a única forma da gente quebrar o ciclo de pobreza é com a educação, não tem outra forma. É uma das coisas mais legais e eu gosto mesmo de fazer”, ressalta Luana.
O futuro
Um dos grandes sonhos da jovem, desde muito nova, é fazer um intercâmbio e esse sonho está prestes a se realizar. “Eu descobri o intercâmbio que existe para universitários, que é o work and travel, você trabalha durante as férias da faculdade. Como as férias da USP bate certinho com o período, então é perfeito para eu ir”, comemora.
“Só que eu descobri que é um intercâmbio pago, mas não é um valor muito alto. Um intercâmbio é, geralmente, pra você ficar quatro meses em outro país, mais 50 mil. Agora um intercâmbio de 9 mil reais, é uma coisa mais alcançável. Então eu comecei a pensar muito sobre isso, comecei a me organizar, durante um ano, mais ou menos, para começar a pagar. E daqui cinco meses estou embarcando”, relata Luana.
A mauaense conseguiu um estágio em um banco, o que também ajudou a pagar o intercâmbio, porém ela não gostou muito da experiência corporativa. Para o futuro, a jovem quer seguir na carreira de pesquisa. “Eu fiz a minha primeira pesquisa e submeti para um congresso de escola de regressão lá em Belém do Pará. Eles aceitaram e eu fui pra lá, viajei de avião pela primeira vez em novembro do ano passado, para apresentar minha pesquisa. Foi uma experiência muito legal”, conta.
“Apesar de pagar pouquíssimo, é um trabalho que não é valorizado, é o que eu gosto. Eu acabei saindo do banco, mas serviu muito para eu saber que eu não quero essa área. Realmente o que eu quero fazer é mestrado, doutorado, quero continuar estudando”, acrescenta a jovem.
“A partir do momento que eu pisei meu pé nessa universidade, minha vida mudou completamente, o estudo quebrou meu ciclo de pobreza. A coisa mais importante pra mim, com certeza foi ver que eu tenho o básico agora, que eu não tenho que passar mais fome, que eu consigo fazer com que meus pais não passem tanto isso também. Isso de não fazer faculdade é só uma maneira de manter a gente como mão de obra barata, a educação jamais vai ser uma perda de tempo. Agora estou conseguindo realmente ver o que é viver de verdade”, finaliza Luana.