Após sofrer assalto, chef de cozinha cria projeto de capoeira em bairro periférico carioca

Através do Educar para Transformar, professor muda realidade de crianças e adolescentes do bairro Recantus, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense

Conteúdo por Lupa do Bem
20/01/2025 17:04

Neuza Nascimento

Através do Educar para Transformar, professor muda realidade de crianças e adolescentes do bairro Recantus, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense
Através do Educar para Transformar, professor muda realidade de crianças e adolescentes do bairro Recantus, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense - Educar para Transformar

Belford Roxo tornou-se uma cidade no dia 3 de abril de 1990, quando a Lei Estadual nº 1.640 foi aprovada e o distrito foi desmembrado de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. 

Em 2022, tinha aproximadamente 484 mil habitantes e um IDH de 0,684. Esse índice, embora classificado como médio pelos padrões da ONU, está significativamente abaixo da média do estado do Rio de Janeiro, cujo IDH é 0,762, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021). 

Em outras palavras, o município que abriga a farmacêutica alemã Bayer e onde nasceu e cresceu o ator, cantor, compositor e multi-instrumentista Seu Jorge, infelizmente, ainda hoje é conhecido pela violência local. É nesse cenário de vulnerabilidade que atua o projeto Educar para Transformar, com o objetivo de gerar impacto social na comunidade. 

O projeto foi criado por Renato Rocha, pai de um casal de filhos e conhecido pela capoeira como professor Lobo. Formado em gastronomia, Renato trabalha na área hospitalar e tenta ser um cidadão ativo, através do envolvimento com a capoeira e trabalho social comunitário. O projeto completou 20 anos recentemente, atendendo crianças, jovens, adultos e pessoas com deficiência. 

Neuza Nascimento, repórter do Causando através do Lupa do Bem, fez uma visita ao espaço onde acontece a iniciativa e conversou com o idealizador da iniciativa. Confira:

Coluna da Neuza: De onde veio a ideia de criar o projeto?

Professor Lobo: O Educar e Transformar surgiu após um assalto que sofri ao chegar do trabalho, em frente a uma escola… Fui abordado por um jovem e, com o desejo de nunca mais ter que ver um jovem com uma arma na mão assaltando um trabalhador, decidi iniciar o trabalho com  a capoeira. 

Coluna da Neuza: Qual é o objetivo do projeto?

Professor Lobo: Eu acho que quando a gente trabalha com o social, é em prol do amor ao próximo. E só com um bom coração conseguimos transmitir isso para a sociedade. E de que forma eu faço? Através do esporte. Ele tem esse poder de transformar algo ruim em algo bom. Mas o objetivo maior é formar cidadãos, dar base a eles para que um dia possam ser um mestre de capoeira ou mesmo um acadêmico, se formando na área escolhida por eles.  

Coluna da Neuza: Como você conheceu a capoeira?

Prof. Lobo: O fato de eu ser assaltado na frente da escola em que eu estudei me impactou muito. Ali existia um projeto chamado Escola Todos Pela Paz, que funcionava nos finais de semana. Além da educação formal, no projeto eram oferecidas aulas de capoeira e teatro, e contava com uma banda que atuava anualmente no 7 de Setembro. Foi assim que conheci a capoeira e depois, decidi criar o Educar para Transformar. 

Coluna da Neuza: Quantos alunos são atendidos? 

Prof. Lobo: Uma média de 40 alunos. As aulas acontecem às terças e quintas-feiras, às 19h.

Coluna da Neuza: E como é o envolvimento da comunidade com o projeto?

Prof. Lobo: A comunidade vem abraçando através da divulgação do trabalho nas redes sociais e quando realizamos eventos, as famílias comparecem em peso. 

Coluna da Neuza: Qual a sua maior dificuldade no projeto? 

Prof. Lobo: As dificuldades são muitas! Uma delas é que, durante todo esse tempo, nunca tivemos um patrocínio externo. Mas tenho esperança de que um dia aconteça. 

Coluna da Neuza: Você já teve vontade de desistir?

Prof. Lobo: Muita, muita vontade. Já passei noites em claro, chorando, ajoelhado, me perguntando o porquê de eu estar aqui e como eu ia conseguir levar isso adiante. Mas os anos foram passando e eu sobrevivi, só não sei como. Só sei que Ele existe, que é uma ferramenta, e que sou um instrumento para o bem.

Coluna da Neuza: Qual a relação com o projeto Um Passo a Mais Capoeira? 

Prof. Lobo: Juntos nos tornamos um pouco mais fortes, mais resistentes. Essa parceria é de coração, corpo e alma. Os dois projetos têm o mesmo propósito: formar bons cidadãos. O Educar para Transformar enverga, mas não quebra. Por muitos motivos, como, por exemplo, essa parceria e a ajuda dos pais dos alunos.

Renato diz ainda que trabalhar com pessoas é um desafio, “mas me sinto muito grato por terem escolhido a mim e à capoeira”. 

“Quando estou triste é para eles que eu ligo, é para eles que peço visita e peço conselhos. Eu não me vejo mais sem esses alunos, para mim, a maior vitória é tê-los na minha vida.” 

Gerando impacto social na comunidade

Renato lembra que treinava os alunos na rua. O benfeitor João José de Souza, vendo a situação precária, cedeu o espaço onde hoje acontecem as aulas, uma vitória para o projeto. 

Apesar de todos os desafios, o projeto acolhe também alunos PcDs, como o caso de Bruno Mateus Santos da Silva, de 24 anos, conhecido na capoeira como Tom. Ele tem dificuldade para se expressar verbalmente, mas fez questão de compartilhar que frequenta o projeto para treinar e realizar muitos exercícios com as pernas.  

Nesse momento, ele recorre a Renato para ajudá-lo a transmitir sua mensagem. O professor incentiva: “fala pra ela o que você faz aqui.” Então, ele responde: “jogo na roda, brinco e outras coisas. Eu gosto muito.” O apelido “Tom” surgiu na capoeira por ele gostar muito de musicalidade.

O projeto foi criado por Renato Rocha, pai de um casal de filhos e conhecido pela capoeira como professor Lobo.
O projeto foi criado por Renato Rocha, pai de um casal de filhos e conhecido pela capoeira como professor Lobo. - Educar para Transformar

Maria Vitória, de 16 anos, conta que participar das aulas trouxe benefícios para a sua saúde mental. “Antes de entrar para o projeto, eu tinha muitos problemas com ansiedade. Chegou a ter dias que eu não conseguia levantar da cama. Comecei achando que  não iria ficar; vim uma vez e continuei. Posso dizer que o projeto me ajudou muito a conseguir socializar, eu tinha problema até em falar com outras pessoas; fazer amigos e até na questão de ter vontade de continuar vivendo.” 

“Eu tinha muitos problemas em casa e com a minha mãe. Aqui a gente não encontra só a capoeira, como o professor mesmo falou; encontramos realmente uma família que, querendo ou não, quando precisamos desabafar é quem procuramos, pode ser o professor ou um colega de treino. A capoeira mudou a minha percepção da vida porque cheguei a um ponto em que eu não entendia muito bem o que era viver.” 

“Aqui na capoeira fui conhecendo as pessoas, fazendo amizade, fui até mesmo tendo mais confiança para conversar. E acredito que, além de mudar a minha perspectiva de vida, me mudou como ser humano. Acredito que a capoeira me ajudou muito nesse quesito, principalmente nas conversas com o mestre na questão de ter mais paciência para ouvir, mais cabeça para sentar e conversar com os outros alunos.”

Já Andrew de Souza Fernandes, de 14 anos, destaca a melhoria na socialização. “Eu era muito estressado e não gostava de falar com ninguém. Quando entrei para a capoeira, comecei a desabafar com algumas pessoas, a conversar. A capoeira é boa e eu gosto. O professor mudou minha vida, ganhei uma família. E, com a parceria do Um Passo a Mais Capoeira, essa família ficou enorme”, explica.

Após sofrer assalto, chef de cozinha cria projeto de capoeira em bairro periférico carioca.
Após sofrer assalto, chef de cozinha cria projeto de capoeira em bairro periférico carioca. - Educar para Transformar

Marienny, de 16 anos, diz que a disciplina do esporte teve reflexo na sua vida escolar. “O Educar para Transformar foi uma luz na minha vida. Eu era uma pessoa muito agressiva e isolada, sempre na minha, não falava com ninguém. Fui diagnosticada muito cedo com alguns problemas como depressão e ansiedade e a capoeira me ajudou muito a sair desse estado.” 

“O professor está sempre me apoiando, aconselhando, me trazendo mais para fora, me incentivando a falar com as pessoas e isso me ajudou bastante. E, diferente do que muitas pessoas acham, a capoeira e os esportes de luta, não deixam a pessoa mais agressiva, é totalmente o contrário.” 

“O esporte, a capoeira e as lutas, me ensinaram respeito e doutrina; eu era uma pessoa que se brigasse mais uma vez na escola seria expulsa e o professor e a capoeira me ajudaram a me moldar. Hoje,  sou bem diferente, graças a Deus e a capoeira, né?” 

Por fim, Victor Moreira, de 20 anos, ressalta que as conexões criadas o ajudaram a controlar seus sentimentos. “O projeto, para mim, foi minha salvação. Na época ninguém sabia, mas eu não estava bem e quase atentei contra a minha vida; foi então que conheci a capoeira. No início, achei que não era para mim, mas aí o meu mestre foi me incentivando a frequentar as aulas. Com o tempo, fui percebendo que gostei muito, mesmo com algumas dificuldades. Eu consegui com a ajuda também dos meus colegas.” 

“Eu não falava com ninguém, era muito tímido e qualquer coisa me estressava. Eu queria sair batendo em todo mundo, quebrar as coisas. Graças ao meu mestre, que também conversou comigo algumas vezes, consegui ter motivação para continuar. Hoje eu não consigo viver sem esse projeto.” 

Saiba como ajudar

É possível ajudar o projeto Educar para Transformar doando tatames, sacos para treino, luvas, pesos de pernas e outros materiais, pois a capoeira abrange musicalidade, cultura e partes de lutas, além das apresentações. Para mais informações, entre em contato pelo número 21 9 6560-2921 e fale diretamente com o Prof. Lobo. O projeto também está presente no Instagram. Para ajudar financeiramente, use a chave Pix  [email protected]

Projetos sociais dão suporte aos moradores da Baixada Fluminense

Além do projeto Educar para Transformar, existem outras iniciativas na Baixada Fluminense que também promovem a cidadania e defendem os direitos humanos dos moradores locais. Uma dessas iniciativas é a Casa Dulce Seixas, uma instituição que acolhe pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade socioeconômica. A maioria dos acolhidos são indivíduos que, não sendo aceitos por suas famílias, foram expulsos de casa devido à sua orientação sexual.

A Casa Dulce Seixas oferece moradia, alimentação e apoio psicológico e psiquiátrico, pois grande parte dos residentes chega com sequelas decorrentes de violências, sejam elas físicas ou emocionais, vividas nas ruas ou dentro do próprio ambiente familiar. Ela ainda disponibiliza, graças a uma parceria com a Fiocruz, acompanhamento para o controle de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), como HIV, hepatite e sífilis. 

Também destaca-se o Centro de Defesa da Vida (CDVida), localizado no centro de Duque de Caxias. O projeto tem como objetivo promover uma cultura de não violência, contribuindo para a prevenção, valorização, defesa e garantia dos direitos humanos. A iniciativa busca gerar trabalho e renda para mulheres em situação de violência, seja motivada por questões de gênero, familiares ou sociais. Além disso, promove debates sobre como as políticas públicas podem ser efetivas no enfrentamento de todos os tipos de violência contra as mulheres.

Já a Feira do Artesão reúne diversos artesanatos produzidos por um coletivo de mulheres. Geralmente, o evento ocorre todas às quintas-feiras, no bairro Jardim Primavera, em Duque de Caxias. A feira tem como objetivo não apenas fortalecer, apoiar e incentivar as artesãs a se desenvolverem, mas também promover um olhar cultural sobre seus trabalhos, valorizando-os para além de sua finalidade comercial.

Por fim, o Fórum Grita Baixada, localizado em Nova Iguaçu, busca agregar e compartilhar experiências de luta em favor dos moradores da região. A organização se dedica a temas fundamentais, como saneamento básico, mobilidade urbana, violência e enfrentamento ao descaso do poder público com a educação.

Todas as iniciativas mencionadas acima têm mais de um ano de existência e contam com a confiança e o apoio de suas comunidades.

 

Neuza Nascimento – Lupa do Bem

Causadora de Educação