84% das ruas de SP que homenageiam pessoas se referem a homens

Por Fernanda Miranda e Heloisa Aun

Doutor Arnaldo, Heitor Penteado, Teodoro Sampaio, Ramos de Azevedo e Brigadeiro Faria Lima. O que esses nomes têm em comum, além de representarem logradouros importantes da cidade de São Paulo? São todos homenagens a homens que ficaram famosos na história por diferentes feitos ou funções que desempenharam.

Historicamente, as mulheres sofrem com o machismo em todos os âmbitos, tanto em relação à violência cotidiana, quanto na questão da desigualdade salarial e de oportunidades. Como reflexo dessa cultura patriarcal, que vem sendo combatida por grupos feministas cada dia mais, a quantidade de mulheres homenageadas em ruas, avenidas e praças da capital paulista é bem menor que a de homens.

Em levantamento inédito para o Catraca Livre, a empresa proScore apontou que entre o total de avenidas, praças, ruas, travessas e viadutos na cidade (50.647), os homens recebem homenagens em 21.694 (42%), enquanto as mulheres aparecem em apenas 3.962 (7%).

 
 

Com relação às ruas, de 41.250 endereços, 18.408 (44%) são referentes a homens e somente 3.325 (8%) a mulheres. Já entre as 4.104 travessas da cidade, 1.590 (38%) homenageiam figuras masculinas e 405 (9%) personalidades femininas.

As 2.678 praças trazem 1.022 (38%) nomes de homens e 144 (5%) de mulheres, enquanto as 2.536 avenidas têm 648 (25%) homenagens a homens e apenas 86 (3%) a mulheres. Por último, nos 79 viadutos de São Paulo, há 26 (32%) nomeações a homens e 2 (2%) a mulheres.

Das 21.733 ruas que homenageiam pessoas na cidade, 18.408 (84%) se referem a homens.

 
 

Toda a disparidade fica ainda mais evidente quando notamos que as homenagens às mulheres se dão em logradouros mais afastados da região central e menos relevantes para a cidade.

Enquanto homens emprestam seus nomes às mais importantes avenidas e ruas de grande acesso, como Avenida Roberto Marinho e Túnel Ayrton Senna, as mulheres limitam-se a serem lembradas na maioria das vezes em logradouros de tráfego local. Carmen Miranda, por exemplo, uma das mais notórias artistas que representam nosso país, nomeia uma pequena rua no Tatuapé, na Zona Leste.

“Essa pouca representatividade é um reflexo da sociedade ultramachista em que vivemos. A cidade acolheu grandes mulheres que foram importantes para a nossa história e elas não são representadas como os homens”, afirma a comunicóloga Paula Dias.

As mulheres na história da cidade

Paula Dias é uma das criadoras do Hey Sampa, um projeto que surgiu em 2014 com o objetivo de aproximar os cidadãos ao patrimônio material e imaterial dos bairros de São Paulo. Entre suas ações mais conhecidas estão os passeios culturais em cemitérios e no centro histórico da cidade.

Em 8 de março, no Dia Internacional da Mulher, o Hey Sampa foi convidado a participar de uma ação que compartilhava a história de mulheres que nomeiam nossos logradouros, como Dona Veridiana e Angélica, ambas homenageadas no bairro de Higienópolis.

Durante a intervenção no bairro, que recebeu lambe-lambes e grafites em homenagem a estas mulheres, Dias recorda que alguns moradores pararam na rua para comentar que seus falecidos parentes conheciam as homenageadas.

 
 

“A história é contada para que haja um ponto de conexão entre as pessoas que vivem e as que viveram ali. Afinal, quem é Dona Veridiana? Quando fazemos uma ação dessas, queremos resgatar o sentimento de pertencimento da pessoa com a cidade”, afirma.

“São Paulo constrói história em cima de história e vai apagando aquilo que existiu. A cidade onde nossos pais nasceram não existe mais. E como a gente faz pra contar e manter as experiências vividas pelas pessoas que já não estão aqui?”, reflete.

O pouco destaque feminino nos logradouros não é uma questão apenas de São Paulo. Em 2015, o grupo feminista francês Osez le Féminisme! (“ouse ser feminista”) usou cartazes para “renomear” as ruas de Paris substituindo nomes masculinos por homenagens a mulheres, como por exemplo o a escritora e filósofa Simone de Beauvoir e a cantora Nina Simone. Na capital francesa, somente 2,6% dos endereços se referem a mulheres notáveis.

Quem nomeia os logradouros de São Paulo?

Atualmente, o poder público é responsável por nomear os logradouros do município. Mas nem sempre foi assim. Nos primeiros séculos de existência de São Paulo, os logradouros recebiam denominações atribuídas pelo próprio povo.

Logo, uma rua podia ser batizada com o nome de um morador muito conhecido, com uma referência a um comércio existente nos arredores ou até mesmo por um aspecto da geografia local.

Os antigos paulistanos diziam que residiam, por exemplo, “junto à casa da Fundição” ou “defronte do Colégio”. Isso bastava, pois os moradores conseguiam se localizar apenas com essas informações. As casas construídas também não possuíam números, pois, da mesma forma, todos sabiam onde elas se localizavam.

 
 

De acordo com o Arquivo Histórico de São Paulo, a primeira menção a uma rua se deu em 1638, conforme registrado nas Atas da Câmara Municipal, o mais antigo conjunto documental da cidade.

Foi apenas no século 19 que a Câmara Municipal tomou para si a responsabilidade de regulamentar a denominação dos logradouros públicos. Os vereadores ficaram determinados a registrar as denominações das ruas em placas e a numeração das casas. A organização foi dada para facilitar a cobrança e o controle do pagamento de taxas e impostos. A partir do século 20, essa função também caiu sobre a prefeitura.

No site Dicionário de Ruas é possível consultar todas os logradouros catalogados na capital paulista, bem como explicações sobre a origem de seus nomes. Confira o banco de dados

neste link.

Programa Ruas de Memória

A lei municipal sobre logradouros, aprovada em 2013, estabelece que a regra é não alterar nomes de ruas, mas determina algumas poucas exceções, como no caso de “autoridade que tenha cometido crime de lesa-humanidade ou graves violações de direitos humanos”. Foi com esse intuito que, em agosto de 2015, nasceu o programa “Ruas de Memória” para substituir endereços ligados à Ditadura Militar.

A Coordenação de Direito à Memória e à Verdade (CDMV), ligada à Secretaria de Direitos Humanos e responsável pela iniciativa, identificou cerca de 30 ruas que homenageiam pessoas envolvidas com crimes de violação de direitos humanos durante o período. Deste número, todos são homens, como o Minhocão, batizado em alusão ao general Arthur da Costa e Silva, segundo presidente do regime.

Na pesquisa inicial, também foram listadas 121 ruas em referência a pessoas que lutaram contra a Ditadura. Da quantidade total, apenas 20 (16%) são mulheres.

 
 

De acordo com Carla Borges, coordenadora do projeto, o Ruas de Memória tem como objetivo “sensibilizar os moradores dessas ruas com o debate sobre a época da Ditadura e ressignificar o espaço público, trazendo uma sensação de pertencimento”.

Para alterar o logradouro, o programa precisa da aprovação de pelo menos metade dos moradores do endereço. Quando as pessoas que vivem no local não têm sugestões de nome substituto para a rua, elas são apresentadas a um banco de referências com mais de 70 personalidades que atuaram pelos direitos humanos. “Nesta lista, a maioria é composta por mulheres importantes da história”, afirma Carla.

A partir da lei municipal dos logradouros, está em tramitação um projeto para mudar o nome do Viaduto 31 de Março, referência à data do golpe em 1964, para Viaduto Therezinha Zerbini, ativista líder do MFPA (Movimento Feminino pela Anistia).

A coordenadora conta que, no caso de ruas que ainda estão sem nomeação, o projeto separou uma lista de sugestões apenas com mulheres para aumentar a representatividade feminina na cidade.

Representatividade feminina

Quantas ruas com nomes de grandes mulheres da história você conhece? Ainda que a quantidade de homenageadas seja proporcionalmente pequena em relação a dos homens, algumas personalidades femininas aparecem em endereços da cidade. Selecionamos três exemplos abaixo:

 
 

→ Patrícia Galvão, a Pagu:

Rua Patrícia Galvão – Jardim Helena, zona leste

Conhecida como Pagu, a jornalista, escritora e ativista política nasceu em São João da Boa Vista, SP, em 1910. Aos 18 anos já participava do movimento modernista e logo em seguida do movimento antropofágico, ao lado de Oswald de Andrade, que se tornou seu companheiro.

Feminista e atuante na produção cultural, Pagu impulsionou grupos de teatro amador e estudantil, assumindo a direção da União do Teatro Amador de Santos, antes dirigida apenas por homens. Morreu em dezembro de 1962.

Não conhece a rua? Confira abaixo:

 
 

→ Carolina Maria de Jesus

Rua Carolina Maria de Jesus, Vila Tolstoi, Zona Leste

Considerada uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) nasceu em Sacramento, Minas Gerais, e mudou-se para a cidade de São Paulo em 1947, onde morou na favela do Canindé, zona norte. Ela trabalhava como catadora e registrava o cotidiano da comunidade em cadernos que encontrava no lixo.

Mesmo com o pouco estudo, tendo cursado apenas as séries iniciais do primário, Carolina de Jesus reunia em casa mais de 20 cadernos sobre o cotidiano da favela, um dos quais deu origem ao livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, publicado em 1960.

Navegue pela rua abaixo:

 
 

→ Dona Veridiana

Rua Dona Veridiana, Higienópolis, Centro

Uma das mulheres mais importantes da história da capital paulista, Veridiana Valéria da Silva Prado (1825-1910) foi obrigada a se casar aos 13 anos com seu tio Martinho, comum nas famílias da época para não dispersar os bens conquistados em outras gerações, e viveu os dez primeiros anos do casamento numa fazenda, a Campo Alto, em Mogi Mirim.

A vida de dona Veridiana teve situações incomuns para as mulheres da época. Ela separou-se do marido e, aos 53 anos, passou a ter ativa presença na sociedade. Além disso, comprou em seu nome um terreno no que é hoje a esquina da Avenida Higienópolis com a rua chamada de Dona Veridiana e ali instalou uma mansão de estilo francês. Por causa de seu interesse por cultura, ela reunia frequentemente artistas e intelectuais em seus salões.

Veja: