‘A gente vive levando bomba de gás’, afirma liderança indígena

Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvurupa, comenta os retrocessos do atual governo em relação aos direitos dos povos indígenas

Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvurupa e liderança da aldeia Yaka Porã
Créditos: Reprodução / YouTube / Gaiato Ubatuba
Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvurupa e liderança da aldeia Yaka Porã

Em fevereiro deste ano, o ministro da Saúde do governo Jair Bolsonaro (PSL), Luiz Henrique Mandetta, anunciou a possível extinção da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e a municipalização da saúde indígena. Segundo a proposta, a ideia é que os serviços sejam coordenados pela prefeituras nos locais em que os indígenas estejam vinculados a áreas urbanas. Já onde não é possível definir um único município responsável, a gestão seria das secretarias estaduais de Saúde.

O desmonte da saúde causou revolta dos indígenas, que organizaram manifestações em todo o país nos dias 27 e 28 de março, pressionando o governo contra as medidas. Diante da mobilização, Mandetta recuou da decisão, mas ainda não há nada escrito que comprove a manutenção do programa. A Sesai administra os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas, responsáveis pelo atendimento específico dessa população, considerando os recortes culturais e religiosos e suas especificidades.

Em Ubatuba, no litoral de São Paulo, indígenas da aldeia Boa Vista comandaram protestos e buscaram apoio do prefeito para se articularem contra o desmonte da saúde. Entre eles, estava Marcos Tupã, de 49 anos, coordenador da Comissão Guarani Yvurupa e liderança da aldeia Yaka Porã (Rio Bonito).

Em entrevista à Catraca Livre, Tupã explica que, por meio de anos de muita luta e mobilização, os indígenas conseguiram a criação dessa secretaria em 2010. “Hoje, ela mantém o atendimento na saúde específico para comunidades indígenas, feito nos mesmos moldes do SUS [Sistema Único de Saúde]. Agora, simplesmente, o governo quer passar essa responsabilidade para o município.”

O coordenador afirma que alguns municípios da capital até dariam conta da saúde indígena, mas no interior dos estados é bem mais complicado porque nem todos os prefeitos apoiam os direitos desses povos. “Direito não se negocia, direito se conquista. Nós não concordamos com isso”, diz.

Tupã e outras lideranças cobraram um posicionamento da prefeitura contra a proposta. Na esfera nacional, o Acampamento Terra Livre, maior assembleia indígena do Brasil, que aconteceu de 23 a 26 de abril em Brasília (DF), teve como uma das principais reivindicações os retrocessos na área da saúde.

Para ele, a discussão recente é bastante séria porque todas as conquistas em relação à educação, à saúde e à demarcação de terras se deram através de movimentos dessas populações. “As garantias da Constituição Federal de 88, os dois artigos importantes para os indígenas, foram uma luta na qual nós tivemos que fazer grandes mobilizações em Brasília e em todos os cantos do país”, reitera.

“Muitos deputados apresentam propostas de mudanças nas leis para tirar essas conquistas que estão no papel, na Constituição. Temos poucos parceiros. Agora, conseguimos, graças a Deus, eleger pela região de Roraima uma representação de uma mulher indígena para o Congresso Nacional. Mas a melhor forma de buscar futuro é por vias legais, com Ministério Público Federal, da Região e da 6ª Câmara de Brasília”, completa.

De acordo com a liderança Guarani, não há nenhuma abertura de diálogo por parte do governo. “Ele [Bolsonaro] quer acabar com tudo isso, quando o dever do estado seria proteger os bens e garantir os direitos dos povos. Eles não nos consultam para nada, atropelam tudo, e a gente tem que viver muitas vezes levando bomba de gás, tudo isso para a gente conseguir um diálogo.”

Posted by Mídia Ninja on Wednesday, April 24, 2019

Luta por direitos

Marcos Tupã é nativo da aldeia do Rio Silveira, no município de São Sebastião (SP), mas com apenas 7 meses de vida se mudou com a família para a aldeia Boa Vista, onde foi criado. Sua fase de alfabetização e a maior parte de seus estudos ocorreu dentro da escola de sua tribo, que na época recebeu apoio de ONGs para manter um professor indígena. O líder também morou durante 18 anos na terra indígena Tenondé Porã, em Parelheiros, extremo sul da cidade São Paulo, mas, há quatro anos, retornou para Boa Vista.

Entre os anos 80 e 90, Tupã conviveu com caciques, pajés e outras lideranças. Por influência de seu pai, que era presidente de uma organização de caciques, Marcos começou a se envolver intensamente com a vida política, principalmente na questão da educação e do território. Neste período, eles iniciaram a luta pelo reconhecimento da demarcação de terras das aldeias do estado de São Paulo.

“Um episódio que me chamou atenção aconteceu durante uma reunião importante na Secretaria de Governo de São Paulo. Nela, os caciques das aldeias do estado estavam ao lado de membros do governo, todos engravatados”, lembra Tupã. “Em certo momento, os dois lados da mesa deveriam assinar uma ata da reunião, quando reparei que os membros do governo assinaram com caneta e os caciques e lideranças com o dedo, com o polegar”, completa.

As experiências vividas ao lado das lideranças fez com que, aos 15 anos, o indígena decidisse conversar com jovens das aldeias da região para organizar uma articulação e passar acompanhar esses encontros. “Tudo nessa época ainda era bem começo. Foi uma luta nossa, da nossa geração. Tivemos um período de abertura e diálogo por parte do governo vigente, de Mário Covas.”

A partir de então, ele e outras jovens lideranças começaram a atuar em defesa de uma política de educação no estado, apresentando propostas para a contratação de professores indígenas. Após reuniões com profissionais da área e o governo, houve uma grande conquista de criar o magistério e as escolas indígenas no estado, com uma estrutura própria e adequada para as demandas dessa população.

Comissão Nacional Guarani Ywyrupa entrega documentos à Funai exigindo cumprimento da Constituição Federal em demarcação das Terras Indígenas
Créditos: Reprodução / Facebook
Comissão Nacional Guarani Ywyrupa entrega documentos à Funai exigindo cumprimento da Constituição Federal em demarcação das Terras Indígenas

Demarcação de terras

Segundo Tupã, a maior luta atual, não só de sua aldeia, mas de todo o povo Guarani, é o reconhecimento territorial. Algumas terras foram demarcadas entre os anos 80 e 90, em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mas são áreas pequenas. Para conquistar esse objetivo, dos anos 2000 para cá, esses povos fizeram uma intensa mobilização, que culminou com a criação, em 2006, de uma nova representação dos Guaranis, a Comissão Guarani Yvurupa, da qual ele é coordenador.

Nessa época, foram levantadas outras necessidades e a continuidade da demarcação de terras. A Funai também recebeu um pedido para fazer um novo estudo sobre as áreas demarcadas e houve um processo de revisão dos limites dessas áreas. Esse levantamento foi reconhecido e publicado no Diário Oficial. “Ainda temos a luta pela educação, das escolas indígenas, que continua muito forte para muitas aldeias.”

Tupã ressalta que a maior dificuldade atual é o governo Bolsonaro não querer reconhecer os indígenas enquanto povos originários. “Essa questão política é bastante séria agora. Ele desmontou toda a estrutura da Funai.” A base da Funai de demarcação de terras indígenas foi para o Ministério da Agricultura, e a parte social ficou na pasta da ministra Damares, de Direitos Humanos. “É um risco muito grave de posicionamento em relação às conquistas dos povos indígenas do Brasil.”

A mobilização indígena para barrar retrocessos se dá em vários âmbitos. Muitas vezes, os povos partem para o confronto direto, com manifestações nas ruas, fechando rodovias e viajando até Brasília, além de buscarem parcerias com ONGs, entidades e sindicatos.

“Geralmente, nos organizamos através da representação e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil [APIB], saindo para a rua e tentando manter uma assessoria jurídica, que faz a parte administrativa e nos defende, principalmente na área de demarcação e reintegração de posse. A gente aciona a Justiça por meio desses advogados, alguns de movimentos sociais”, afirma.

Questionado sobre a importância da união dos povos nesse momento político, a liderança conta que, em primeiro lugar, é essencial levar informação para as aldeias, organizando conversas recorrentes e informando os jovens a respeito da luta e do movimento. “O futuro da aldeia está na geração que vem no caminho.”