Como ajudar uma amiga ou familiar que sofre violência doméstica
Não julgar a vítima é a dica de ouro dada pela psicóloga
Se você é mulher, muito provavelmente já se viu dentro de um relacionamento abusivo ou conhece alguém que foi vítima desse tipo de violência. Na maior parte das vezes, a pessoa nem chega a contar de fato sobre alguma situação de agressão física ou psicológica, porém, você percebe que algo está errado a partir de indícios, como a falta de brilho no olhar, o afastamento do grupo de amigos ou da família, a recusa em fazer coisas que ela antes gostava ou mesmo marcas pelo corpo.
Mas como conversar com alguma amiga, familiar ou conhecida que sofre violência doméstica? Segundo a psicóloga Kátia Braz, especialista em saúde mental e dependência química, não dá para chegar e falar abertamente: “Olha, esse cara é abusivo e vai te fazer sofrer”, pois, às vezes, a mulher está muito apaixonada e não percebe as agressões, ou ela está passando por um momento em que se culpa por essas situações.
“O que podemos fazer nesses casos, quando ainda não está muito aparente e não há riscos de algo mais grave ocorrer, é começar a conversar com essa mulher sobre relacionamento abusivo ou, ainda, mandar uma reportagem que chame atenção para o problema para que ela se identifique com outras histórias similares”, ressalta a psicóloga, que atende diariamente vítimas de violência.
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Kátia cita como exemplo a história de uma jovem que sofria um relacionamento abusivo por parte de seu pai. O que sua amiga fez? Convidou esta moça para almoçar em um domingo na casa dela, onde estariam presentes o pai e a mãe. Assim, ela viu o que é um tipo de relacionamento saudável entre pai e filha, e pôde comparar as situações que vivia em sua casa. “É uma forma de ajudar, bem silenciosa, mas muito efetiva, pois provoca uma reflexão.”
Outro ponto essencial a ser considerado ao falar com as vítimas é não julgar em hipótese alguma porque ninguém sabe o que se passa dentro de cada relacionamento.
Além disso, é preciso ter atenção redobrada a qualquer indício de que algo mais grave pode acontecer. “Se a gente percebe que está na iminência de uma violência física ou de um feminicídio, a gente pode e deve denunciar. Não precisa se identificar, pode ser de forma anônima”, enfatiza.
“Em alguns casos, temos que intervir. Eu sempre me coloco nessa posição: eu estou aqui, se quiser, eu posso te ajudar. Eu não posso ir além disso senão vou invadir o espaço dela e, assim como o parceiro, impor regras em sua vida”, completa.
De acordo com a psicóloga, mesmo fazendo uma denúncia, não é possível termos controle se a investigação terá continuidade. “Mesmo assim, isso dá um susto no abusador, mostrando que alguém de fora viu e fez o papel de denunciá-lo”, ressalta.
Ao conversar com mulheres que relatam casos de agressão, seja psicológica ou física, a pessoa não deve revitimizá-la, ou seja, colocar a culpa da violência na vítima, desqualificando seus desejos e direitos exatamente como o parceiro faz.
“Precisa tomar muito cuidado. É comum a amiga vir falar algo, contar o que o namorado fez e, você, como amiga, aconselha ela a terminar. Ela concorda, mas três dias depois publica foto no Instagram ao lado do parceiro, feliz da vida. Então, você liga para ela e a xinga”, exemplifica.
Kátia explica que isso pode acontecer porque é uma tentativa da mulher de a relação melhorar e o homem mudar suas atitudes, por mais que todos saibam que isso pode não terminar bem.
A melhor forma de lidar, então, é apoiar essa pessoa, mostrar textos sobre o tema e levá-la em rodas de discussão sobre machismo. “Para além de um problema pessoal, este é um problema social. Falar disso em rodas de amigas é muito importante, pois essa conversa pode fazer com que essa colega consiga ajudar outra mulheres.”
O apoio enquanto psicóloga
Ser psicóloga de mulheres vítimas de violência é uma realidade diferente da psicoterapia comum, relata Kátia. “Assim como no caso da dependência química, nós temos que fazer algumas intervenções muitas vezes. Isso é diferente de você provocar reflexões no outro para que ele se descubra sozinho, como faço com frequência”, conta.
Em casos mais graves, eu aconselho a pessoa a fazer uma denúncia. “Ainda sim, só se ela quiser. Se sim, vou explicar para ela as implicações de denunciar. Muitas vezes elas até vão, porém, algumas voltam atrás porque ainda têm na mente a promessa do ‘sujeito encantador’. Elas ainda buscam isso.”
Em muitos casos, a mulher reata a relação. Isso acontece, pois ela está dependente daquele relacionamento, por mais que seja abusivo. “É o padrão do relacionamento que ela sabe estabelecer. Isso vem muito da história de vida dela, do ambiente em que ela foi criada, da forma com que ela foi tratada. Às vezes, ela está reproduzindo algo que viveu a vida inteira, não sabe ser diferente disso e precisa aprender”, explica.
“O nosso trabalho de psicóloga precisa ser muito sutil para não dar a impressão àquela mulher que ela só será bem recebida na sessão se fizer a denúncia e se afastar do sujeito. Temos que acolher a ponto de ela entender que sempre terá uma mão amiga, um apoio, alguém que vai ouvi-la e ajudá-la a pensar”, finaliza.
Traumas e outros relacionamentos
Para uma mulher vítima de violência doméstica, os traumas permanecem para o resto da vida, e isso, inclusive, dificulta suas novas relações, tanto afetivas como de amizade, no trabalho ou com a família.
Quando a vítima sai do relacionamento abusivo, ela ainda está muito ligada naquela promessa de amor para a vida inteira, de conto de fadas. “A mulher fica uns dias afastada e o que acontece? Passa a tensão maior, ela se sente melhor e já acha que fez errado em se separar, pois as coisas podem ser diferentes”, diz a especialista.
Ao investir na situação, ela acaba entrando novamente na primeira fase do ciclo de violência doméstica. Este ciclo é composto por uma fase inicial, em que há o aumento da tensão, e o homem começa a ter um comportamento violento, seguida da fase dois, em que a tensão acumulada culmina no ato de agressão, e, em seguida, ocorre uma terceira fase, da “lua de mel”, na qual o agressor diz estar arrependido e busca a reconciliação. Aos poucos, o casal retorna à fase um, de tensão e, assim, às agressões novamente.
“Por isso é necessário um acompanhamento e uma rede de apoio para que a vítima se mantenha fortalecida. Muitas vezes, ela estará sozinha e pensará que a culpa de tudo foi dela. Os traumas, infelizmente, são muito profundos e é necessário um tempo para isso virar apenas uma cicatriz”, completa.
Campanha #ElaNãoPediu
Nenhuma mulher “pede” para apanhar. A culpa nunca é da vítima. A campanha #ElaNãoPediu, da Catraca Livre, tem como objetivo fortalecer o enfrentamento da violência doméstica no Brasil, por meio de conteúdos e também ao facilitar o acesso à rede de apoio existente, potencializando iniciativas reconhecidas. Conheça a nossa plataforma exclusiva.