Cresci vendo princesa beijando príncipe na boca, e ainda assim sou gay
Texto de opinião
Em toda a minha infância, os romances dos livros e HQs que eu lia, dos desenhos a que eu assistia e das historinhas que eu ouvia envolviam um personagem feminino e outro masculino.
No meu favorito, “O Rei Leão”, Simba e Nala me emocionavam na cena em que eles se reencontravam após anos, com a música do Elton John “Can You Feel The Love Tonight” (“Essa Noite O Amor Chegou”, na tradução em português).
Nesta noite de reencontro, Simba e Nala aparecem deitados no mato, um sobre o outro, enquanto a leoa tasca uma lambida na bochecha do leão, tentando seduzi-lo. Eu tinha 3 anos de idade quando o filme foi lançado, e assisti a ele quase que semanalmente até uns 8 anos. Achava linda esta cena entre os dois.
Mesma coisa com praticamente todas as histórias de princesas da Disney. Na minha favorita, “A Branca de Neve”, a princesa só voltou à vida após o beijo do príncipe encantado. Um beijo bastante explícito, inclusive.
Poderia ficar horas aqui com você numerando casais heterossexuais da ficção e que embalaram toda a minha infância. Mas não consigo nomear nem um casal gay.
A primeira vez que tive contato com uma obra ficcional que falasse sobre a homossexualidade foi nas aulas de literatura, no Ensino Médio. Em uma lista de leitura obrigatória para um vestibular, eu precisei ler “Bom-Crioulo”, de Adolfo Caminha.
Em rasas palavras, o livro aborda um triângulo amoroso formado entre dois marinheiros e uma prostituta, e é considerado uma das primeiras obras de toda a América a falar sobre relações homossexuais. A capa mostrava os dois personagens, como você pode ver abaixo.
Eu tinha 16 anos quando o li, e já sabia há pelo menos quatro que era gay. Descobri minha homossexualidade ainda cedo, nos primeiros desejos que pintaram pelos amiguinhos da escola. Mas como não tinha tido contato com nenhuma referência homossexual até então, me mantive calado. Tinha medo de que descobrissem.
Até “Bom-Crioulo”.
O livro me fez entender que pessoas como eu, que se sentem atraídas por outras de mesma orientação sexual, existem. Eu não era o único, não estava sozinho naquele mundo. Eu poderia existir também.
Foi quando comecei a dar os primeiros sinais públicos de que era gay. Contei para amigos e amigas. Desabafei com primas. Expus aos meus pais. Finalmente saí do armário, arcando com todas as consequências que uma sociedade conservadora e atrasada como a nossa podem oferecer.
Eu não tenho palavras para dizer o que aconteceu na Bienal do Livro do Rio de Janeiro nesta semana. Com a censura, promovida e exaltada pelo prefeito Marcelo Crivella, de livros e HQs com temática LGBT, fiquei pensando quantas crianças e adolescentes deixariam de ter contato com aquilo que eles também podem ser, mas talvez nem saibam.
A homossexualidade foi tratada como crime. Como perversão. Como doença. Como “proibida para menores”. Até aí, nada de novo. Mas fazia muito tempo que eu não via o Estado corroborar com esse discurso, em vez de combatê-lo.
Estamos num tempo em que o conservadorismo hipócrita é a nova lei que domina. Histórias de casais heterossexuais são permitidas, enquanto que um beijo gay é velado e proibido. Estão mais preocupados com quem se beija do que quem se mata.
Como vi nos grupos de WhatsApp esta manhã, “proíbem livro porque é perigoso, e liberam armas porque é tranquilo”.
Mas queria deixar claro que, mesmo com todas as influências heterossexuais que recebi na infância, hoje bato no peito e digo que sou gay. Com muito orgulho. A arte me libertou de amarras que nem deveriam existir. A ela, sou muito grato.