Efeito Bolsonaro: casamento LGBT cresce 65% em novembro ante 2017
"Decidimos nos casar durante a queima de fogos ao final da apuração do segundo turno, na noite de 28 de outubro", afirma a jornalista Letícia Leão
A jornalista Letícia Leão e a cineasta Isabela Ferrari se conheceram em novembro de 2015 e em dois meses começaram a namorar. Elas pretendiam se casar no dia 26 de outubro de 2019, mas a data foi antecipada em quase um ano. O motivo? A eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República.
“Decidimos nos casar durante a fatídica queima de fogos que ocorreu ao final da apuração dos votos no segundo turno, na noite de 28 de outubro. Chorando, por medo de perder os poucos direitos conquistados pelo grupo LGBT, corremos contra o tempo para o casamento ocorrer em 1º de dezembro. A pressa foi resultado do medo e, de certa forma, resistência”, afirma Letícia à Catraca Livre.
Um dia depois do segundo turno das eleições presidenciais, Letícia se informou nos cartórios sobre a documentação necessária, em 30 de outubro foi buscar as certidões de nascimento atualizadas e já no dia 31 as noivas marcaram a celebração civil.
Feito isso, em apenas um mês, as duas escolheram a chácara para realizar a festa, além de comida, doces, vestidos, decoração e lembrancinhas. Em vez de contratar uma empresa para fazer o buffet, elas mesmas organizaram tudo sozinhas. “Foi nesse momento que a gente descobriu por que as pessoas marcam casamentos com um ano de antecedência: tudo precisa ser pago antes da festa e, se você nunca casou, dificilmente sabe disso”, conta.
Com pouco tempo e dinheiro para pagar todos os gastos, as noivas não tinham fotógrafos e bartenders para o dia da festa. Por isso elas saíram em busca de pessoas que se voluntariaram pelas redes sociais para trabalhar gratuitamente em uniões LGBT. Ao final, a fotógrafa Monique Amaral aceitou registrar a festa, a Agência Ron Ron fez os convites sem cobrar nada e uma amiga do casal ofereceu o serviço do bar de graça.
Letícia e Isabela não foram as únicas que decidiram garantir o casamento ainda em 2018. Com a eleição de Bolsonaro, muitos casais LGBT tomaram a decisão de antecipar a cerimônia por receio de que esse direito seja alterado no país. O presidente eleito, embora não tenha falado sobre o assunto durante a campanha, já deu diversas declarações ofensivas a essa população, como quando disse que “ter filho gay é falta de porrada”.
Em meio ao medo coletivo, Maria Berenice Dias, presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), recomendou que os casais LGBT se casassem logo, antes que esse direito possa ser retirado pelo próximo governo. O casamento LGBT não é lei no país, e sim uma jurisprudência sancionada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Essa decisão pode ter reflexo no aumento de casamentos entre LGBTs no país nos últimos meses. Segundo a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen Brasil), em 2017, foram 5.838 casamentos homoafetivos. Já as Estatísticas do Registro Civil 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), registraram, no total, 5.887 matrimônios. De acordo com o IBGE, a diferença de 49 casamentos homoafetivos entre os bancos de dados acontece porque são anteriores, de 2016, e não tinham sido somados a seu respectivo ano de ocorrência — só foram contabilizados em 2017.
Em 2018, até o dia 10 de dezembro, o número de casamentos homoafetivos já chegava a 6.956, como informou a Arpen. O crescimento mais expressivo na comparação entre os dois anos ocorreu no mês de novembro, logo depois da eleição de Bolsonaro, passando de 595 para 986 — 65,7% a mais.
O casamento LGBT no Brasil
Em maio de 2011, o STF mudou o entendimento do Código Civil de que a família era formada por um homem e uma mulher. Desde então, uniões estáveis entre pessoas do mesmo gênero passaram a ser permitidas, seguindo as mesmas regras e com as mesmas consequências que aquelas entre casais heterossexuais.
A decisão fez com que casais homoafetivos passassem a pedir a conversão da união estável em casamento, conforme está previsto no Código Civil, mas muitos tiveram resistência nos cartórios. Assim, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução que permite aos cartórios registrarem casamentos entre pessoas do mesmo gênero e os proíbe de se recusarem a fazê-lo.
No entanto, como nenhuma lei nesse sentido foi aprovada, o que garante os casamentos e uniões estáveis homoafetivas é a jurisprudência. Ela só poderia ser revertida caso o Congresso aprovasse uma lei proibindo o matrimônio entre pessoas do mesmo gênero.
Atualmente, existe um projeto de lei, de autoria da senadora Marta Suplicy, que muda o Código Civil para retirar menções de gênero em relação ao casamento e à união estável, pois hoje a lei fala em “homem e mulher”. Embora tenha sido aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a proposta foi barrada após um recurso do senador Magno Malta (PR-ES), da bancada evangélica, que solicitou que a matéria fosse votada em plenário. O PL foi colocado em pauta para votação em dezembro do ano passado, mas não houve quórum. Para que vire lei, precisa ser aprovado nas duas Casas do Legislativo e ter a sanção presidencial.
Bolsonaro é uma ameaça?
“A vitória do Bolsonaro representou inúmeras derrotas. Derrota da equidade feminina, derrota do direito de ir e vir dos LGBTs e a piora na questão da segurança, uma vez que não se combate violência com mais violência. Significa quatro anos de medo de sair nas ruas”, afirma Letícia Leão.
A declaração da jornalista representa um sentimento geral que tomou conta da população LGBT durante e após as eleições. Muitas pessoas sofreram agressões devido à orientação sexual ou identidade de gênero, grande parte delas cometidas por eleitores de Bolsonaro.
Embora exista um receio de que possa haver retrocessos às minorias no próximo governo, Toni Harrad Reis, presidente da Aliança Nacional LGBTI, explica que conversou há duas semanas com o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, e o questionou sobre a possibilidade do casamento homoafetivo vir a ser proibido no Brasil. “Ele falou que os Poderes são interdependentes e harmônicos, então o Executivo não pode interferir no Judiciário e no Legislativo, e vice-versa. Então não há possibilidade de o presidente fazer um decreto para derrubar a decisão”, diz.
“O que pode haver é uma mudança na composição, se aumentar o número de ministros. Hoje nós temos 11 e todos são favoráveis à igualdade de direitos, que está no artigo terceiro e quinto da Constituição, e fala que todos são iguais perante à lei sem distinção de qualquer natureza. Isto está na cláusulas pétreas”, ressalta Toni, que é ativista há 35 anos.
Juntos há 28 anos, Reis e o marido, David, decidiram oficializar o casamento após as eleições porque estavam apreensivos com o que poderia ocorrer. “Já temos contrato de união marital de 1990, a união estável de 2003, depois casamos novamente com a decisão do STF, mas o nosso estado civil era solteiro. A decisão teve relação com o cenário político, mas foi por amor. Era meu sonho entrar na igreja com a marcha nupcial, receber uma benção e ter o sobrenome do David. Então hoje o sobrenome dos dois e de nossos três filhos é o mesmo: Harrad Reis”, relata.
Para o presidente da Aliança Nacional LGBTI, Bolsonaro deverá cumprir a Constituição, como ele mesmo já declarou. “E a nossa Constituição Federal quem faz a interpretação é o Supremo. O governo não poderá ter discriminações. Para isso nós vamos dialogar, e ter reuniões com ministros e ministras do governo. Já estamos com duas audiências marcadas no Congresso para discutir a discriminação e a violência da comunidade LGBT tanto no Senado quanto na Câmara.”
“Mudou o panorama, mas não queremos retrocessos. Se vai ter avanço, aí já ‘são outros 500’. Mas eu sou bastante esperançoso. Acredito que com bons interlocutores e interlocutoras podemos garantir os direitos para a nossa comunidade. Nunca eu vi uma união tão grande de todas as redes”, finaliza Toni.