Erica Malunguinho e a ‘mandata quilombo’ da 1ª deputada trans
"Temos que trabalhar desse lugar, com LGBTs e o povo negro, historicamente inferiorizados, porque é onde estão todas as violências estruturais", afirma
“Ser a primeira mulher trans dentro da Assembleia Legislativa de São Paulo é ter a certeza da existência de um problema estrutural e histórico grave, que faz com que corpos LGBTs e pretos tenham sido apagados das ditas grandes narrativas.” É assim que Erica Malunguinho define sua existência enquanto deputada estadual eleita pelo PSOL em 2018. “Não sou a primeira apenas na Assembleia de São Paulo, como também do Brasil”, afirma.
Malunguinho se refere a seu mandato no feminino, usando o termo “mandata quilombo”, para evidenciar seu propósito maior: o fundamento racial e de gênero, pensando políticas interseccionais e estruturantes. O foco nas minorias, conforme a parlamentar, “diz respeito obviamente à implicação com esses grupos enquanto sujeitos e sujeitas, mas também não apenas sobre essas populações”.
“Entendemos que temos que trabalhar desse lugar, com LGBTs e o povo negro, historicamente inferiorizados, porque é onde estão todas as violências estruturais”, pontua. Para ela, uma vez em que eles conseguem deslocar-se deste lugar de opressão e precarização de suas vidas, a sociedade inteira se transforma e vira um lugar melhor para todos, pois é a partir da base que se movem as demais estruturas sociais. “É uma emancipação coletiva.”
14 DICAS PARA NÃO SER TRANSFÓBICO
De acordo com a deputada, é fundamental que os lugares de tomada de decisões tenham representações da diversidade que compõe o Brasil. “Nós deveríamos estabelecer esse critério: para tudo o que diz respeito à sociedade, como empresas, mídia e política institucional, deveriam ter representantes de todos os grupos — negros, mulheres, indígenas, LGBTs, e também brancos, heterossexuais, etc. Isso é sobre igualdade, equidade e democracia.”
Ainda segundo Malunguinho, o fato de muitas pessoas que compõem essa diversidade não estarem presentes nesses lugares de poder é diretamente proporcional à exclusão e à violência que assola o país. “Indignar-se com a desigualdade, a violência e a exclusão é se mover para que essas diversas humanidades estejam presentes nesses lugares”, enfatiza.
No entanto, para que essa diversidade seja efetiva, é necessário que os grupos estejam nessa grande narrativa não só por fora, mas que se comprometam com as pautas que os fazem estar nesses lugares. “Não é questão de imagem, de representação, mas do que compõe esse corpo político. Um corpo que pensa sobre o que o faz ser negro numa sociedade racista, sobre o que a faz ser mulher numa sociedade machista e o que o faz ser LGBT numa sociedade LGBTfóbica”, conclui.
Trajetória até a Alesp
Nascida em Recife, “no bairro mais negro da cidade”, Malunguinho cresceu em uma família que sempre questionou as desigualdades. A parlamentar foi muito atuante na escola, debatendo com os colegas, fazendo ações e também por meio de performances.
Há 15 anos, se mudou para São Paulo, onde continuou com a militância e estudou educação, se tornando mestre em estética e história da arte pela USP. “Passei anos dando aulas para diversos grupos, como projetos sociais e instituições reconhecidas. Essas aulas estavam sempre atreladas a arte, cultura e política.”
Nessa época, a deputada percebeu que existia uma limitação para as minorias em termos de prática política e, desde então, passou a se organizar de outras formas para dar continuidade à construção histórica dos negros e LGBTs, como com a criação da Aparelha Luzia, centro centro cultural e político, considerado um dos mais importantes pontos de resistência negra da cidade. “Essa foi minha trajetória até chegar a este momento de agora, de sistematização, na Assembleia Legislativa”, diz.
A decisão de se candidatar ao cargo de deputada estadual surgiu para dar continuidade ao processo de resistência dentro das articulações ao longo da história. “Tem algo que é do sistema político e da sociedade acontecendo de forma excludente. É o processo macro. Do outro lado, tem uma história de luta. O povo preto e o povo LGBT estava construindo outra história a respeito da opressão e da violência. Independentemente da grande narrativa violenta, temos que continuar.”
Além de Malunguinho, outras duas mulheres trans também conquistaram vagas em Legislativos estaduais nas últimas eleições, por meio de mandatos coletivos: Erika Hilton, da Bancada Ativista, em São Paulo, e Robeyoncé Lima, da Juntas, em Pernambuco.
Transfobia
Em abril, no plenário da Assembleia, o deputado Douglas Garcia (PSL) declarou: “Se um homem que se acha mulher entrar no banheiro em que estiver minha mãe ou minha irmã, tiro o homem de lá a tapa e depois chamo a polícia”.
A fala transfóbica causou indignação, tanto por parte de Malunguinho, como também dos outros parlamentares e funcionários. Logo após o ocorrido, o mandato da deputada fez uma representação, protocolou no Conselho de Ética e abriu um processo por quebra de decoro parlamentar.
Segundo Erica Malunguinho, quando Douglas verbaliza esse tipo de opinião, diz coisas que estão guardadas na concepção de vida de algumas pessoas, mas até então ninguém tinha sido hostil com ela. “Muito pelo contrário. A relação que os funcionários da Alesp e outros ‘deputades’ têm comigo é extremamente cordial, nunca ocorreu nada negativo antes desse fato.”
Em relação à justificativa do deputado, de que não se referiu diretamente a ela, Malunguinho rebate: “Ele não falou diretamente para mim porque sou uma autoridade também e estava ali. Mas essa transexual que ele citou que daria um tapa poderia ser eu. Ele falou do grupo, da população a qual eu pertenço. Se alguém disser uma ofensa racial a outros negros, qualquer pessoa preta vai se sentir ofendida. Além de uma agressão a nós, é uma agressão às diferenças e às diversidades.”
Ódio às minorias e governo Bolsonaro
Embora tenha sua identidade de gênero respeitada por grande parte das pessoas na Assembleia, a parlamentar relata que são muitas as violências estruturais das quais é vítima e que se dão de diferentes formas. “Podem ser explícitas, descaradas e objetivas, como no caso do Douglas, como também podem ser sofisticadas e sutis, com olhares e comentários”, conta. “Como habitam em mim muitas identidades, consideradas dissonantes – sou negra, nordestina, trans, mulher —, não consigo perceber qual desses olhares chega primeiro.”
Entre os preconceitos que já vivenciou, Malunguinho lembra que, na época da campanha eleitoral, ouviu pessoas que disseram que não votariam nela e que ficavam assustadas quando viam sua foto. “Nada fora do que já é previsto dentro de uma estrutura normativa, dentro dessa sociedade da forma que é. Mas uma coisa posso te falar: quem dizia que se incomodava com minha presença, quando me ouvia falar, mudava de ideia.”
A violência contra minorias intensificou-se no período pré-eleições. Foram muitos depoimentos de agressões físicas e verbais, principalmente contra a população LGBT. De acordo com a deputada, muitos dos simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro acionam um discurso de moralidade e de família para justificar a exclusão de pessoas LGBTs e também da suposta superioridade do homem cisgênero em relação às mulheres.
“Não posso afirmar que esse número aumentou, pois trabalho com dados e não hipóteses. O que posso dizer afirmativamente é que muitos casos de violências verbais que têm acontecido vêm associadas às falas de Jair Bolsonaro e estão endossados pela figura deste presidente”, finaliza.