Falsa acusação de estupro se tornar crime hediondo é retrocesso

Por Fernanda Miranda e Heloisa Aun

Uma sugestão legislativa que está em tramitação na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado propõe a criação de uma lei para classificar como crime hediondo e inafiançável a falsa acusação de estupro.

Para o autor da sugestão, os homens que são “vítimas” da falsa acusação de estupro têm suas vidas arrasadas, podendo perder o emprego, ser linchados e presos injustamente.

Como justificativa para sua sugestão, o proponente afirma que 80% das denúncias de estupro seriam falsas. O site de checagem Aos Fatos, parceiro do Catraca Livre, foi atrás dessa informação e a classificou como insustentável. Confira aqui o resultado.

Atualmente, qualquer ideia apresentada por meio do portal e-Cidadania com mais de 20 mil votos é encaminhada ao Senado para análise. É o caso desta sugestão, a SUG 7/2017, que atingiu a quantidade de votos necessária e foi direcionada à CDH na quarta-feira (19) para estudo. Se aprovado, o texto pode se transformar em projeto de lei e passar a tramitar como as demais proposições legislativas ou ser arquivado.

Qual sua opinião sobre essa sugestão? É possível opinar enquanto a matéria tramita no Senado
Créditos: Getty Images/iStockphoto
Qual sua opinião sobre essa sugestão? É possível opinar enquanto a matéria tramita no Senado

O Código Penal já pune a denúncia falsa de qualquer crime com até oito anos de reclusão. Contudo, a sugestão solicita que a pena máxima suba para 10 anos quando a acusação falsa envolver o crime de estupro. Qual a sua opinião sobre essa sugestão? Ela deveria ser transformada em projeto de lei? Vote aqui.

O Catraca Livre entrevistou as advogadas Ana Paula Braga e Marina Ruzzi por e-mail para entender a problemática por trás dessa sugestão legislativa. “Esse tipo de medida fará com que as mulheres se sintam ainda mais desencorajadas a levar o processo de denúncia de estupro adiante”, opinam. Confira abaixo:

Catraca Livre: Qual a opinião de vocês sobre esta sugestão legislativa?

Ana Paula Braga e Marina Ruzzi: Ela é extremamente problemática por uma série de motivos. Primeiro que, do ponto de vista legal, é completamente desnecessário haver um crime específico para esse tipo de conduta. Isso porque já temos algumas figuras criminais que penalizam a pessoa que faz uma falsa denúncia de um crime.

Dentre elas, podemos citar a denunciação caluniosa e a falsa comunicação de crime, previstas respectivamente nos artigos 339 e 340 do Código Penal, que ocorrem quando alguém faz uma falsa denúncia de crime para alguma autoridade, bem como o crime de calúnia, previsto no artigo 138 do Código Penal, que ocorre quando essa imputação de falso crime se dá perante a sociedade.

Questiona-se, também, por que a denúncia do crime de estupro seria mais grave, por exemplo, do que a de crimes como roubo, furto, homicídio, dentre outros, a fim de se tornar um crime hediondo. Todos eles teriam igual condão de prejudicar a vida de uma pessoa inocente que tem contra si uma grave acusação. É curioso destacar que homens acusados de violência sexual ainda conseguem se tornar presidentes, ganhar Oscar, enquanto a vítima fica estigmatizada para sempre.

Então na verdade o que vemos é uma iniciativa popular para deslegitimar o movimento que tem se insurgido contra a cultura do estupro. Ela ignora completamente a realidade do tratamento legal conferido às vítimas. É muito difícil para mulheres conseguirem fazer denúncias contra seus agressores, pois há uma série de obstáculos emocionais, sociais, burocráticos e jurídicos.

De que modo a aprovação de um projeto de lei assim pode significar um retrocesso para as denúncias de estupro no Brasil, desencorajando as vítimas?

Uma vítima de estupro não sofre violências apenas no momento do crime. Se ela decide buscar os seus direitos, é vitimizada constantemente, desacreditada, tem de relatar seu trauma incontáveis vezes para estranhos que não estão de verdade interessados no que ela está contando.

Em crimes sexuais, coloca-se uma lupa muito mais nas atitudes da vítima do que nas do acusado. É ela que é questionada sobre onde estava, o que vestia, se havia bebido, se na verdade não haveria consentido ou se está mentindo. Esse tratamento desumano não é dado, por exemplo, em crimes patrimoniais. Ninguém questiona uma vítima de assalto do porquê ela estar denunciando ou o que fez para ter sido assaltada.

Além disso, condenar um estuprador não é uma tarefa fácil, pois mesmo quando a mulher consegue levar a denúncia adiante, as provas que o sistema judiciário entende serem importantes, como o exame de corpo de delito, são muito falhas. Até porque o crime de estupro não inclui apenas a penetração vaginal e é muito difícil – para não dizer impossível – que outros atos libidinosos (como o sexo oral ou toques de partes íntimas) apareçam no laudo técnico.

Até mesmo quando a violência se dá pela via da penetração, é muito difícil o laudo do IML apontar uma conclusão precisa da violência, pois os vestígios tendem a sumir em poucas horas. E quanto a isso, importante destacar uma dura realidade que é a mulher ganhar forças para ir à delegacia e realizar o exame. É muito comum que, quando decida denunciar, os vestígios (quando existentes) tenham mesmo desaparecido. Outra dificuldade é que crimes sexuais ocorrem, normalmente, às escuras, quando não há testemunhas ou outros meios de prova. No fim, acaba sendo a palavra da vítima contra a do agressor.

Diante de todas essas dificuldades, a maioria das vítimas acaba não denunciando. Estamos em um pleno movimento para fortalecer as mulheres e fazer com que elas denunciem seus agressores, rompendo os grilhões do silêncio e esse tipo de medida fará com que elas se sintam ainda mais desencorajadas a levar o processo adiante. Pois além de todas as dificuldades institucionais, se esse projeto se tornar lei, as mulheres que não conseguirem comprovar o estupro sofrido (diga-se de passagem, a maioria dos casos), poderão ainda por cima ser presas por crime hediondo.

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