Homem em situação de rua diz que não há água gratuita pra beber

Quarta-feira, 3 da madrugada, uma noite quente, o galão de água do bebedouro de casa havia secado e a Sônia (como eu chamo a insônia) estava aqui aumentando a minha sede. Até pensei em beber água da torneira, mas lembrei da crise hídrica de São Paulo, falta d’água, uso do volume morto, o encanamento do meu prédio é antigo… Enfim, resolvi sair pra rua, comprar água no bar 24h e até dei risada quando lembrei que o governador Geraldo Alckmin ganhou um prêmio pela sua gestão hídrica recentemente.

O bar, que só vendia garrafinhas de 500ml no valor de R$ 3,50 cada, me fez gastar R$ 7,00 em duas unidades, total de 1 litro. “Caro pra caralho, dava pra ter comprado uma cerveja!”, pensei enquanto caminhava de volta pra casa. Na minha direção, empurrando um carrinho de supermercado cheio de cacarecos na avenida Paulista, veio um morador de rua:

– Moço, me dá uma ajuda?
– Putz, to sem grana, amigo.
– Eu não quero dinheiro não. To com sede! – disse ele olhando para as garrafas de água na minha mão.
– Opa, claro pega uma pra você. Qual o seu nome?
– Alexandre.

Ele abriu a garrafa na minha frente e tomou quase tudo num único gole. Perguntei se ele queria a outra, mas ele disse que já tava “cheio e sem sede” agora. Ao me despedir, ele falou “Olha, pega um presente aqui pra você, eu achei ontem no lixo da rua de baixo”. Ao dizer isso, o Alexandre começou a remexer dentro do seu carrinho e sacou de dentro dele algo parecido com uma mini TV e rádio, sei lá, tinha um estilão bem retrô. Eu disse:

– Não mano, não precisa não, relaxa.
– Qual o seu nome?
– Felippe.
– Então, fica pra você. Eu nem tenho tomada pra ligar, esta coisa deve ser elétrica, né? Eu só peguei porque achei bonita. Mas nunca vou usar uma dessa na minha vida. Você faz o quê?
– Eu? Sou jornalista. Mas cara, eu achei a TV incrível, mas não posso aceitar. Vende ela, faz uma grana. Sei lá. Mas nossa, ela é bem bacana. Ah, sei lá. Acho que eu quero.
– Você é jornalista, é? Então escreve uma matéria falando que mendigo sente sede. Sede é pior do que fome! Você já teve sede? É foda, meu irmão. Nenhum bar ou restaurante deixa a gente entrar pra beber, eles falam que os clientes não gostam. E nas ruas não tem torneiras.

– Poxa, to ligado. Nos abrigos da prefeitura tem água pra vocês?
– Mas se liga, não é sempre que to nos abrigos, né! To aqui na avenida Paulista porque é mais claro, tem movimento na madrugada e aqui ninguém vai botar fogo em mim ou me bater. Pode reparar que durante à noite aqui fica cheio de mendigo. Sabia que as vezes uns somem e ninguém sabe o que aconteceu com eles? Fala pro prefeito colocar uns bebedouros de água por aqui. Nos pontos de ônibus ficam passando estas propagandas com vídeo, que coisa besta. Por que eles não fazem propaganda com bebedouro de água pra todo mundo usar e beber? Num é só mendigo que vai beber não, o pessoal que corre e anda de bicicleta aqui na Paulista vai gostar também. No parque Ibirapuera tem bebedouros, mas lá só os ricos usam. Até bebedouro pra cachorro lá tem. É água, sabe? Tem que ter. Coloca uns bebedouros de água no vão do Masp ou na frente do Parque Trianon.

Se antes eu estava achando que a minha madrugada estava sendo conturbada porque tive que descer 18 andares pra comprar água, na mesma hora caiu a ficha que os moradores de rua vivem um perrengue de verdade quando se tem sede. Senhor prefeito, marcas e agências de publicidade, o recado do Alexandre está dado. 

Quanto a TV ou rádio que ele ia me dar (até agora não entendi o que era, mas sei que gostei), acabou não rolando. Na última hora ele desistiu porque disse que a ideia de vender e fazer uma grana era boa. Mas só pra registrar, fiz o clique acima.

Texto editado*

Mostrei esta matéria pro Alexander (eu havia escrito Alexandre, mas ele me disse que é Alexander), até mesmo pra pegar a sua autorização de uso de imagem e declarações, e ele pediu pra eu acrescentar o texto abaixo:

* “Eu moro nas ruas há 6 anos. A minha mãe é jornalista e mora no Rio de Janeiro. Eu sou o único filho homem, ela só tem filhas agora. Eu uso este chapéu porque uma vez ela me bateu quando eu era criança e acabou amassando a minha cabeça, ela é mais funda aqui na parte de trás. Bom, se um dia ela quiser me ver, to por aqui. Só isso. Tchau“.

Por Felippe Canale

Jornalista parceiro da Catraca Livre