A major da PM que protege vítimas de violência doméstica na BA
Denice Santiago está à frente da Ronda Maria da Penha, que atua no acolhimento de 637 mulheres ameaçadas por homens na Bahia
A major Denice Santiago do Rosário, de 45 anos, encontrou uma forma latente de exercer sua missão enquanto profissional: salvar a vida de mulheres. Ela é responsável por comandar a Ronda Maria da Penha, unidade da Polícia Militar que trabalha no acolhimento de vítimas de violência doméstica na Bahia desde 2015.
Não importa dia, horário ou lugar: se a mulher se sentir ameaçada, a equipe de policiais é acionada para protegê-la. A patrulha foi pensada para acompanhar as brasileiras que estão sob medida protetiva judicial após casos de agressão por parte de companheiros, familiares ou vizinhos.
Nascida e criada em Salvador (BA), Denice tem quatro irmãos e sua família sempre foi muito unida. A major estudou em escola particular até terminar o Ensino Fundamental I e, depois, foi para um colégio público da cidade. “Eu era muito estudiosa e evitava sair para a diversão”, conta.
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Em 1989, quando terminou o segundo grau – hoje chamado de Ensino Médio – a baiana soube que havia aberto o concurso para a Polícia Militar de seu estado. “Meu pai que avisou sobre a prova, pensando muito mais na estabilidade financeira do que em uma carreira de fato.”
‘A polícia me escolheu’
Denice entrou como sargento em 1990 e fez parte da primeira turma aberta para mulheres da Polícia Militar na Bahia. Atualmente, ela é uma das duas únicas oficiais a ocupar um posto de comando na corporação. “Eu costumo dizer que a polícia me escolheu, não eu que a escolhi”, reflete.
Logo no início da carreira, ela e as colegas começaram a verificar como era o machismo no ambiente de trabalho na polícia. Os aspectos que mais as incomodavam eram, sobretudo, o uso de roupas masculinas, o alojamento pensado apenas para os homens e o trato com as PMs, geralmente vistas como incapazes de exercer certas funções.
Todos esses fatores geraram um questionamento: “Por que a gente não tem na Bahia um núcleo que pense a vida da mulher dentro da corporação?” Foi então que, em 2006, surgiu o Centro Maria Felipa (CMF), um grupo que trabalha até hoje para ajudar as policiais militares do país.
O nome do centro foi escolhido em homenagem a uma heroína da história do Brasil.
“Maria Felipa é sinônimo de coragem e bravura. Mulher simples do povo, em 1823 lutou contra os portugueses, liderando dezenas de mulheres, homens e índios, na queima de 42 embarcações que estavam aportadas na praia do convento, prontas para atacar Salvador. Maria Felipa ecoou o grito da vitória ao lado dos guerreiros itaparicanos. Nascia, assim, a primeira heroína negra da Independência da Bahia”, diz o texto publicado no site da PM.
O núcleo já teve muitas conquistas. Entre elas, uma norma que proíbe o comandante de escolher quando a policial gestante deverá parar de trabalhar no serviço operacional – elas chegavam a ficar nas ruas até a véspera do parto.
Com a portaria, o grupo conseguiu o deslocamento dessas profissionais gestantes para a área administrativa. “Foi uma decisão significativa para a saúde da mulher e da criança.”
O CMF também conseguiu a promover um trabalho interno para oferecer auxílio a mulheres da PM vítimas de violência. “Reformulamos o regulamento de uniformes, fizemos as mulheres pensarem no seu lugar na corporação e induzimos os homens a nos enxergarem como profissionais policiais militares”, completa a major.
“Não sei se eles passaram a nos enxergar de outra forma, mas ao menos viram que existia outra maneira diferente daquela que eles imaginavam. É um processo muito maior. Ao menos provocou a inquietação”, conclui Denice.
A ronda
O envolvimento da baiana com o Centro Maria Felipa firmou seu foco em atuar na questão da mulher. Mas ainda faltava entender como ela, como PM, poderia ajudar no acolhimento das vítimas de violência doméstica, não só no âmbito interno da corporação. Até que veio a indicação da patrulha Maria da Penha do Rio Grande do Sul, um trabalho pioneiro na área.
Denice e outras profissionais trouxeram a ideia para a Bahia e criaram a Ronda Maria da Penha em 8 de março de 2015, Dia Internacional da Mulher. A iniciativa é fruto de uma parceria com a Secretaria de Segurança Pública e a Secretaria de Políticas para as Mulheres, com um termo de cooperação técnica que inclui o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e a Defensoria Pública.
A Vara de Violência recebe os casos de agressões, defere as medidas protetivas e as mulheres que a juíza entender que correm mais riscos são encaminhadas para o programa.
A ronda na Bahia tem bases em Salvador, onde a major vive, e nas cidades de Paulo Afonso, Juazeiro, Feira de Santana e Serrinha. No total, 27 policiais militares – 18 homens e 9 mulheres – trabalham diariamente no núcleo da capital baiana.
O acompanhamento na residência das vítimas é feito de surpresa para manter os agressores a distância. “Nós precisamos mostrar a eles que existe um patrulhamento sendo feito a qualquer momento, assim ele sabe que, caso tente importunar a mulher, estaremos lá para prendê-lo”, explica a comandante da ronda.
Todos os policiais da patrulha passam por capacitações constantes, que falam sobre as relações de gênero, o patriarcado, a Lei Maria da Penha, além de treinamentos para aprender a lidar com a mulher em sofrimento psíquico e a atuação estabelecida para cada caso de violência.
Hoje, são 457 mulheres protegidas pela equipe em Salvador. Em todo o estado, este número chega a 637 vítimas.
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Major, mãe e mulher
Denice Santiago acorda todos os dias às 5h da manhã e vai para a academia. Em seguida, volta para casa, acorda o filho de 15 anos para tomar café da manhã ao seu lado antes do adolescente ir para a escola. Por volta das 8h30, chega ao quartel, onde fica até às 18h30 em reuniões, palestras, entre outras atividades.
Pela noite, chega em sua residência, faz o jantar, conversa com o filho e o marido e, antes de dormir, ainda estuda. Ela está na fase de conclusão do mestrado em “Desenvolvimento Territorial e Gestão Social”, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). A defesa do trabalho é no próximo dia 5 de abril.
A rotina agitada é quebrada aos finais de semana, quando ela e a família vão para a praia, visitar amigos e se divertir. “Se bem que em março trabalhei nos dois últimos fins de semana”, relata.
O contato próximo e cotidiano com histórias complexas de violência doméstica é um de seus maiores desafios. “Eu não chego em casa e consigo fazer essa ruptura entre a Denice e a major que comanda a tropa. É impossível, mas a gente aprendeu a se organizar para apoiar essas pessoas e, ao mesmo tempo, cuidar da nossa própria saúde psicológica.”
Os policiais que trabalham na ronda passam por trabalhos terapêuticos e encontros com psicólogos. “Criamos uma horta e um jardim na nossa sede para que a gente possa conversar sobre os casos, até porque precisamos estar inteiros para auxiliar mais mulheres.”
A Ronda Maria da Penha é o lugar em que a major se sente “mais policial”. “Ao ajudar uma mulher nessa situação, não estamos sendo apenas policiais militares, mas sim serem humanos. Eu me predispus a salvar vidas”, afirma.
Para o futuro do projeto, Denice quer ampliar a atuação da patrulha e atingir cada vez mais mulheres. “E, na vida pessoal, vou brigar bastante com o meu filho por causa das namoradas, como uma boa mãe ciumenta que sou”, finaliza.
Campanha #ElaNãoPediu
Nenhuma mulher “pede” para apanhar. A culpa nunca é da vítima. A campanha #ElaNãoPediu, da Catraca Livre, tem como objetivo fortalecer o enfrentamento da violência doméstica no Brasil, por meio de conteúdos e também ao facilitar o acesso à rede de apoio existente, potencializando iniciativas reconhecidas. Conheça a nossa plataforma exclusiva.