Mariana, 5 anos: livro relembra o maior desastre ambiental do Brasil

“15:30” traz 71 retratos da fotógrafa mineira Isis Medeiros após 5 anos do crime ambiental de Mariana

“Cheguei em Mariana no dia seguinte ao rompimento da Barragem de Fundão. O primeiro sentimento foi de estar completamente perdida em meio ao caos. Queria encontrar uma forma de mostrar o que estava acontecendo através da fotografia, mas de repente me vi diante de uma situação que me paralisou”. O relato é da mineira Isis Medeiros, fotógrafa que acompanhou de perto o crime ambiental da mineradora Samarco/Vale na cidade histórica, ocorrido em 2015.

No ano em que o episódio completa cinco anos, a fotógrafa lança o livro “15:30”, que compila imagens feitas por ela sobre a tragédia desde a cobertura inicial até seus desdobramentos nos anos seguintes junto às comunidades locais.

Em 5 de novembro de 2015 acontecia o maior desastre ambiental do Brasil, após o rompimento da barragem de rejeitos Fundão, na cidade de Mariana (MG) – Foto: Isis Medeiros

“15:30” traz 71 imagens selecionadas por Medeiros dentre mais de 8 mil fotos que compõem todo trabalho. “Não foi fácil editar todo esse material. É bem grande e diverso. Vai desde as primeiras reuniões de atingidos pela barragem em Mariana, passando por retratos, visitas a comunidades, reuniões, plenárias, manifestações, marchas e encontros, até as últimas imagens das ruínas de Bento Rodrigues, quatro anos após o crime”, conta a fotógrafa. “Como representar cinco anos de luta, resistência, impunidade e injustiça? Qual a melhor forma de contar sobre sofrimento, dor e indignação, através das imagens?” São escolhas complexas, revisitar esse trabalho foi uma tarefa difícil”.

Fazer fotográfico

Isis Medeiros conta que a cobertura do crime ambiental de Mariana mudou toda sua perspectiva profissional como fotógrafa. Foi através do contato com os atingidos pela tragédia que a mineira decidiu tornar-se fotojornalista e desenvolver um trabalho de denúncia com relação à atividade exploratória da mineração em Minas Gerais. “Estar diante desse crime me fez sentir mais humana. Isso interferiu diretamente no meu fazer fotográfico, na minha abordagem e na aproximação das pessoas.

A ideia do livro surgiu logo no início de seu trabalho, quando ela passou a acompanhar as comunidades da Bacia do Rio Doce. “Fui pela primeira vez cobrir a situação em Mariana já acompanhando o Movimento dos Atingidos por Barragens. Foi através da atuação junto aos movimentos sociais que me envolvi de forma mais prática, nas cidades e comunidades atingidas”, relembra. “Com o passar do tempo e o esfriamento do assunto, vi cada vez mais a necessidade de produzir um material que ficasse para a posteridade, que trouxesse a temática para o centro do debate. Com intenção de ampliar as vozes dos atingidos que gritam por justiça, decidi materializar parte desse trabalho em um livro”.

Barragem de Fundão se rompeu e liberou 62 milhões de m³ de lamas e rejeitos

Para Medeiros, há pouca informação documental sobre o assunto nos museus, galerias e acervos públicos. “Não temos sequer uma plataforma digital reunindo os principais estudos a respeito do tema, uma exposição audiovisual ou qualquer outra documentação disponível para estudo, quem está contando essa história são as mineradoras. Sentia a obrigação de devolver parte dessa história documentada às comunidades, após cinco anos de envolvimento, uma solução possível foi produzir esse livro”, ressalta.

Uma câmera na mão e uma luta na cabeça: a hora e a vez do foto jornalismo

Em meio aos sete anos frente à cobertura de pautas populares e protestos, a fotógrafa chama atenção para o papel do fotojornalismo em um cenário onde o ataque à imprensa se torna cada vez mais evidente. De acordo com a organização Repórteres Sem Fronteiras, o Brasil ocupa, atualmente, o 107º lugar no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa de 2020. “O fotojornalismo se tornou muito importante, feito de forma independente, autoral, livre de uma editoria. Tem mais liberdade para pautar aquilo que é importante. É muito difícil pra gente submeter nosso trabalho a um jornal que, às vezes, não tem sensibilidade para entender o que tá acontecendo lá na ponta. Quando a gente pisa no território, tem a liberdade de construir essa história, as coisas ganham uma potência diferente do que tem sido produzido pela mídia tradicional. Claro que tem muita coisa legal sendo publicada, trabalho muito bem feito, mas quando é um trabalho mais comprometido com uma causa, a potência é diferente”.

E se nos corredores das grandes redações do país, a agenda de lutas populares não recebem a devida atenção, é nas entrelinhas do jornalismo independente que a reivindicação da margem ganha voz. “Uma responsabilidade que tenho desde o início é de não cortar as falas das pessoas. O que é muito difícil, porque os espaços têm limitação do que é possível fazer. E quando fazemos este trabalho de forma independente, a gente que cria o espaço, que dá o formato. E isso é importante porque essas pessoas já estão tão violentadas, sofrendo violações de direitos, e quando  têm a oportunidade de falar, se expressar de forma mais profunda, elas querem que o depoimento delas seja valorizado”.

Mais de 200 famílias perderam suas casas e 19 pessoas morreram em Bento Rodrigues – Foto: Isis Medeiros

Com o livro, Medeiros propõe trazer uma leitura visual do pós-tragédia. Retrato do passar do tempo, das horas, dos minutos, do sofrimento causado às populações atingidas. “Tentei trazer, a partir da leitura, esse sentimento de angústia. Angústia de uma não resposta, não reparação, não justiça. A impotência de mudar uma realidade que é muito dura. De leis muito atrasadas, que não são cumpridas de fato”.

Para a autora, o livro busca fazer com que as pessoas se coloquem no lugar das vítimas do rompimento da barragem. “Quando a gente fala que essas pessoas são atingidas é porque elas tão afetadas diretamente pelo crime. Mas, na verdade, todos nós somos atingidos quando tragédias como essas, em Mariana ou Brumadinho, acontecem. Porque afetam o meio ambiente, as nascentes, aquilo que a gente precisa pra sobreviver, que é terra, água, ar.

Questionada sobre a expectativa em relação ao futuro, a fotógrafa não vê motivos para otimismo. Segundo ela, tem sido cada vez mais difícil acreditar em alguma resposta positiva para Mariana, sobretudo se levado em conta a influência política e econômica que está em jogo. “As pessoas viram que o processo foi tomado pelo poder econômico, político. Que essas mineradoras têm de influência não só em Minas Gerais, mas no Brasil. Somos um país colonizado por essas potências, forças que dominam territórios, tiram direitos, violam direitos humanos, meio ambiente, leis ambientais e, ainda assim, saem impunes”.

Centro do debate

680 km de rios e córregos foram atingidos pelos rejeitos da lama, incluindo o Rio Doce, fonte de abastecimento para diversas cidades entre MG e ES – Foto: Isis Medeiros

Medeiros encerra lembrando que, mesmo após as tragédias de Mariana e Brumadinho, 9 cidades foram obrigadas a evacuar moradores por riscos de novos rompimentos em Minas Gerais, como Barão de Cocais e Itatiaiuçu. “O governo virou as costas desde que sentou com as mineradoras pra negociar de portas fechadas.  Isso já é dar as costas para o povo. A gente não ter participação no processo de reparação já é um grande dano. Então não tem muita esperança em relação ao povo atingido, da parte do governo. Eu acredito, e alguns movimentos se mobilizam pra isso, em construir uma resistência a partir das próprias populações atingidas. Construir um poder debaixo para cima, que é algo muito mais demorado, mais difícil, mas o que parece mais efetivo. E o livro tem o papel de cumprir essa função, de luta, trazer essa referência para as pessoas, de mudança social. Ouvir mais as pessoas, colocá-las no centro do debate.

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