Mestre em educação, venezuelano recomeça vida em São Paulo

Há um mês e meio em SP, professor participou de programa de capacitação profissional e busca oportunidade para trazer família ao Brasil

11/04/2019 10:19 / Atualizado em 23/04/2019 16:39

Há um mês e meio em São Paulo, o venezuelano Gustavo Moncada Guédez esboça em um pedaço de papel o mapa de seu país para explicar a extração de recursos minerais destinados, segundo ele, à China. O tom professoral alude aos 38 anos de carreira letiva que foi obrigado a abandonar para recomeçar a vida no Brasil.

Trajeto percorrido por Gustavo desde que saiu de sua casa, em Acarigua, noroeste da Venezuela
Trajeto percorrido por Gustavo desde que saiu de sua casa, em Acarigua, noroeste da Venezuela

Era maio de 2018, o sexagenário partiria de Acarigua, no noroeste venezuelano, para cruzar metade do país de carro até chegar a Santa Helena de Uiaren, na fronteira com Pacaraima (RR). Para além dos mais de 1.400 km percorridos, Gustavo deixara para trás esposa, o filho, amigos, trabalho e uma vida inteira de lembranças. Na capital roraimense, Boa Vista, se juntara à filha e ao genro que anos antes encontraram refúgio em território brasileiro.

Desempregado e debilitado pelos efeitos de uma diabetes tipo 2, o professor de ciências sociais chegava ao Brasil com dois objetivos: conseguir assistência médica para o tratamento da sua doença e uma nova fonte de renda para ajudar a família.

Nos primeiros dois meses em Roraima, Gustavo exerceu diversas atividades, como voluntário em um programa de apoio a refugiados da ONU. Com o tempo, entretanto, descobriu que as oportunidades ali eram limitadas. Além disso, a grande presença de venezuelanos na cidade provocava um clima de competição pouco amistoso entre os 277 mil habitantes da capital mais setentrional do país. “Boa Vista não estava preparada para o impacto migratório venezuelano. E muito venezuelano não estava pronto para imigrar. Aí houve um choque cultural, há um impacto cultural, porque o venezuelano tem uma maneira diferente de ser.”

Uma vida dedicada à educação

Com mestrado em Educação e pós-graduação em Sociologia, Gustavo teve boa parte da vida dedicada ao ensino em sala de aula.

Trabalhou como professor universitário até 2018, quando testemunhou o colapso econômico que envolveu seu país nos últimos meses, em meio à falta de emprego, assistência médica, educação e até itens básicos para a sobrevivência, como água, luz ou comida.

Ele explica que, apesar de o governo oferecer um seguro social, a realidade econômica é um desafio para a sobrevivência. “O que ganhamos não serve para nada, porque vivemos uma superinflação na Venezuela. Onde o salário mínimo não está de acordo com as necessidades da população. A cesta básica é inalcançável. Chegou um momento em que eu, minha esposa e meus filhos não podíamos cobrir nossas necessidades. Minha esposa enferma, eu enfermo, só tínhamos uma opção: ou se cura ou come. Ter uma alimentação de qualidade, que sustente, não é a realidade de muitos venezuelanos que, muitas vezes, passam dias sem comer.”

“Estou aqui para fazer qualquer coisa, pode ser até lavando louça, não tenho problema com isso”, diz o venezuelano Gustavo Guédez
“Estou aqui para fazer qualquer coisa, pode ser até lavando louça, não tenho problema com isso”, diz o venezuelano Gustavo Guédez

Os anos de estudos debruçados sobre temas socioeconômicos permitiram a Gustavo uma visão privilegiada do panorama histórico venezuelano. Para ele, seu país vive hoje uma deterioração social, econômica, moral e cultural. Não levanta bandeira de nenhum partido. “Mas não sou político, sou acadêmico. Não sou ultra-opositor do governo nem apoiador da oposição. Apenas não sou indiferente. Eu sou analítico, interpreto por meio de um ponto de vista sociológico.”

Avalia também o contexto em que se insere a imigração venezuelana, segundo sua opinião, dividida em três categorias: as famílias que saíram primeiro, possibilitadas pela condição financeira. Em seguida, os que tinham condição, mas que deixaram parte da família e, por último, todos os desesperados, que, sem nada a perder, partiram em busca da própria sorte. “Estou entre a segunda e a terceira, já que precisei deixar minha família, vender o carro e boa parte dos bens que tinha para começar uma nova vida aqui.”

Recomeço 

Desde que chegou a São Paulo, Gustavo vive em um centro de apoio a refugiados mantido pela Fundação Fé e Alegria, localizado no bairro do Cursino, zona sul da capital paulista. Lá, ele e outros 18 refugiados têm direito a casa e comida enquanto buscam uma oportunidade de emprego na maior cidade da América do Sul.

Sua rotina é marcada pela entrega de currículos durante a semana, quando sai às 7h da manhã, batendo de porta em porta atrás de emprego até o fim do dia. Aos domingos, dedica seu tempo de descanso para lavar roupas.

No fim de março, ele e um grupo de 13 venezuelanos participaram do projeto  “Novos Caminhos”, realizado pela Tembici em parceria com o Instituto Aromeiazero e com o ACNUR, a agência da ONU para refugiados no Brasil.

No curso, os participantes aprenderam técnicas de mecânica, reforma e reparos básicos em bicicletas, segurança no trânsito, mobilidade na cidade, além de relações no mercado de trabalho. Ao todo foram 32 horas de aulas, com transporte, material e certificado garantidos pela Tembici.

Gustavo e outros 15 venezuelanos participaram recentemente de um curso de capacitação profissional
Gustavo e outros 15 venezuelanos participaram recentemente de um curso de capacitação profissional

Enquanto nenhum trabalho aparece, Gustavo luta contra o tempo, já que tem direito a três meses de moradia no centro de apoio.

Disposto a aceitar qualquer oferta de emprego, o professor universitário reflete: “Venho aqui com tudo o que tenho, estou em São Paulo há um mês e meio. Estou aqui para fazer qualquer coisa, pode ser até lavando louça, não tenho problema com isso. Eu sou uma pessoa que sempre digo: aquele que não aprende o novo não quer ir adiante. E quem tudo sabe não sabe de nada, já diria o filósofo”.

Apesar disso, lamenta a situação que vive, após quase quatro décadas dedicadas à profissão. Aos 60 anos, vê seu sonho de um futuro tranquilo roubado. “Para mim me sequestraram, me assaltaram depois de 38 anos trabalhando e buscando tudo. Eu trabalhei para estar tranquilo, ao lado da mulher, sentado com meus amigos e viver. E agora tenho que começar de novo, do zero. Não tenho mais o ímpeto da juventude, mas tenho discernimento para saber o que procurar.”

Nesta semana, o professor universitário tem a primeira entrevista marcada desde que chegou a São Paulo: para trabalhar como ajudante de cozinha em um restaurante no Brás, na zona leste, com salário de R$ 1.400. O que ele acredita ser o primeiro passo para o recomeço. “Minha meta é trazer minha esposa e meu filho, a meta mais urgente. Talvez voltar à educação, mas preciso regularizar minha documentação, meus títulos, para quem sabe um dia voltar à sala de aula.”