No espetáculo do cancelamento todo mundo perde
Com a cultura do cancelamento, tende-se a produzir não justiça, mas justiçamento
Fica cada vez mais claro que os “canceladores” estão entre nós. E eles estão em vários lugares – não só em reality shows, mas nas redes sociais, no aplicativo de mensagem e nas interações com famílias e amigos, especialmente via internet.
Refiro-me aqui a todos que se sentem no direto de perseguir quem quer que seja sem medir as consequências, desde pessoas que podem ter cometido pequenos ou grandes erros até aquelas que apenas têm opiniões ou comportamentos diferentes. Muitas vezes o cancelamento é embasado no desconforto individual, podendo ser resultado de limitada inteligência emocional do “cancelador” ao se deparar com o distinto, com o outro.
A cultura do cancelamento gera, como em um enxame de abelhas, um fluxo enorme de pessoas que, ao “seguir o líder”, ataca, desrespeita e, no limite, assedia o indivíduo “cancelado”, deixando clara a falta de espaço para diálogo e para a troca de ideias, e demonstrando profunda ausência de empatia para com o outro. Empatia é uma palavra que está fora da moda hoje em dia, mas que, em essência, significa a nossa capacidade de se colocar nos pés da outra pessoa.
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Claro, ser crítica ao “cancelamento” não significa dizer que todos devemos pensar e agir da mesma maneira. O ponto é que, com a cultura do cancelamento, tende-se a produzir não justiça, mas justiçamento.
Em outras palavras, muitas vezes o que se gera é uma verdadeira tortura de isolamento social e digital ao cancelado, na maioria dos casos desproporcional aos atos cometidos. Antes, o cancelamento era feito dentro dos muros da nossa existência física – com os amigos da escola, com a turma do trabalho e até dentro da família. Já era muito sofrido; agora, porém, com o megafone da internet, o sofrimento torna-se infinitamente maior, e nenhum passo pode ser dado em falso.
Muita gente se sente protegida no ato de cancelar pelo famoso bordão “pronto, falei”. O problema é que impulsividade não é justificativa para o fato de emitir opiniões sem conhecer efetivamente a situação e o contexto que a originaram, e muito menos julgar atitudes e ações de um indivíduo sem que ele possa se defender ou posicionar. Nesse tipo de perspectiva encontramos, infelizmente, a opressão daquele que muitas vezes se sustenta por um padrão de comportamento socialmente aceito.
No caso do meu trabalho e do sofrimento das mulheres e homens que encontro todos os dias em meu consultório, isso envolve do corpo dito “perfeito” à roupa descolada; dos hábitos alimentares supostamente “saudáveis” aos exercícios que não podem deixar de ser feitos religiosamente. E, claro, essa opressão do cancelamento influencia mais e mais pessoas a manter o ódio destilado inicialmente.
Por isso, é preciso estarmos atentos ao que fazemos nas redes sociais e nos ambientes que frequentamos. Caso você perceba um movimento violento de contraposição de ideias ou de ataque cujo objetivo é o de isolar ou atacar pessoas, tente compreender o contexto e a situação e se colocar no lugar da pessoa antes de reagir. Além disso, valorize sempre a discussão respeitosa de ideias e desestimule a “coragem” de se falar o que quer sem filtros e sem apreço pelo outro, seja quem for.
É preciso entender que cada um de nós, com a internet, conquistamos o direto de falar e sermos escutados por milhares, talvez milhões, de pessoas; com isso, porém, vem também muita responsabilidade. A sua opinião acaba onde começa o meu direito de ser respeitada por quem sou. Nosso teclado tem o poder similar ao de um gatilho, mas muitas vezes a guerra que se inicia não tem vencedor; todos saem perdendo: os canceladores, o cancelado, e nós, os expectadores do cancelamento.
Texto escrito pela nutricionista Marcela Kotait.