Prostituta e travesti afirma que é discriminada na Unicamp

Aqui na Unicamp sou tratada com o descaso das pessoas consideradas um peso pros critérios de produtividade da Capes, do CNPq e do Currículo Lattes.

 
 
Leia um capítulo do livro aqui

Doutoranda da Unicamp, Amara Moira, prostituta e travesti, afirma que é desprezada na universidade e publica esse artigo.
Meu projeto de doutorado passou em primeiro lugar no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Unicamp, três anos e meio atrás e hoje ele me enche de vergonha. Vergonha por ser inútil, vergonha por perceber que a Universidade sente prazer com as coisas mais inúteis — e quanto mais inútil melhor! Àquela época eu ainda era o homenzinho cis padrão, branco, nada afeminado, cara de heterossexual, estudioso, e depositava todas as minhas expectativas de realização pessoal na vida acadêmica, lendo livros que ninguém lê, escrevendo artigos que ninguém vai ler (e eu nem um pouco preocupada com isso). Mas quando deu um ano de doutorado, bolsa de estudos pela primeira vez me permitindo sentir o gostinho da independência financeira, aí eu percebendo que outras pessoas trans estavam surgindo na Unicamp e conseguindo se fazer respeitar, nossa, não aguentei mais viver essa vidinha caquética dentro dos padrões e rompi foi logo com tudo.

 
 

Me assumi Amara, travesti, dia primeiro de maio de 2014 e a acolhida que recebi dos estudantes da Unicamp e dos movimentos estudantis foi gigantesca, em parte porque as três ou quatro trans que me antecederam pavimentaram bem o caminho pra leva que viria em seguida. Mas a dura constatação que tive quando finalmente pude me assumir travesti foi que, se eu não lutar por um mundo habitável, se eu não disputar a sociedade e o meu direito de ocupá-la, de existir ali, ninguém se preocupará em fazê-lo por mim. Era a minha vida que estaria em jogo, e aí esse doutorado que nunca me incomodou por ser tão inútil, começou a pesar nos meus ombros.

James Joyce, o Guimarães Rosa da língua inglesa, escritor que brincava com os limites do compreensível, que se esmerava em criar um texto que resiste a significar, que não quer se fazer entender, como pensar a tradução dessa sua obra, em especial do livro Ulysses? Basicamente esse era o projeto, mas o que me pegava fundo era pensar que, uma vez concluído, em nada esse doutorado ajudaria a diminuir a violência brutal que pessoas trans vivem. Nada. No máximo faria com que eu ganhasse uma blindagem extra, canudo de doutora em mãos, e aumentasse as minhas chances de fugir do destino que perseguia praticamente todas as travestis.

 
 

Por isso a militância passou a ser tão necessária na minha vida, ir falar diretamente com quem não estudioso de James Joyce, com quem não era da crítica literária, com quem não era do meu instituto nanico na Unicamp. Era preciso vazar os muros da universidade, se eu queria mesmo lutar por um mundo mais habitável para travestis, para transexuais. Era preciso ir nas escolas, nas praças, nos hospitais, nas demais faculdades, nas Câmaras Municipais, falar com jornalistas, com os portais da internet, ocupar as redes sociais, disputar a opinião pública… resultado? A repercussão foi gigantesca e as transformações começaram rapidinho a se fazer visíveis, mas a Unicamp jamais engoliu eu deixar em segundo plano o meu projeto inútil de doutorado.

Costumo dizer que a Unicamp me aceitou trans e até puta, mas não militante. O fato de eu começar a apontar o quanto esse espaço era parte importante da engrenagem que reproduzia as exclusões sociais fez com que eu precisasse, por exemplo, trocar de orientador duas vezes. Mas mais do que isso: enquanto diversos outros institutos e universidades ficavam disputando meus textos, minha presença em mesas, em eventos, enquanto ouço de professoras poderosas que, se eu estivesse na faculdade dela, ela dava um jeito de me aceitar para estudar o que quer que fosse, aqui na Unicamp sou tratada com o descaso das pessoas consideradas um peso pros critérios de produtividade da Capes, do CNPq e do Currículo Lattes. Número de papers publicados na área de concentração dos meus estudos, única coisa que importa. Burocratas.

Duas teses de doutorado defendidas, uma na UERJ e outra na USP, tiveram capítulos inteiros sobre meu blog “E Se Eu Fosse Puta”, que hoje virou livro, um projeto de doutorado acaba de ser aprovado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH / Unicamp) tendo o meu livro como uma das obras a ser estudadas, mas adivinha? Nada disso conta pro meu Institutozinho de Letras… continuam me tratando como uma piada em termos de produtividade. Sabe o que dizem nos corredores? Os marxistas do instituto (esses que leem a obra de Marx em alemão, mas que jamais colaram em organizações grevistas ou movimentos sociais) falam que minha militância não é bem de esquerda, aí as estudiosas feministas, que decoraram páginas e páginas da Beauvoir em francês, dizem que o que eu faço não é feminista o suficiente e, por fim, os críticos literários, sabedores de mil idiomas, dizem que li James Joyce demais pra escrever desse jeito, tão desleixado.

Travesti incomoda, ainda mais se puta, ainda mais quando quer falar e ser ouvida. Essa universidade não vai conseguir ser a mesma por muito tempo.