Socióloga critica fim de atendimento na Cracolândia em meio à pandemia: ‘Ação de crueldade’
"O que a prefeitura precisa fazer é abrir mais serviços e não fechar os poucos que tem", reflete a socióloga Nathália Oliveira
Mesmo diante do avanço do novo coronavírus na cidade de São Paulo, a Prefeitura não mediu esforços na manhã desta quarta-feira, 8, para fechar o Atende 2, centro de atendimento social localizado na Cracolândia.
O local era um dos últimos equipamentos públicos em funcionamento e um dos únicos que oferecia alimentação, pernoite e chuveiros na região. Com o fechamento, os acolhidos foram transferidos para um novo espaço no Glicério, a cerca de 3 km do local.
Apesar do comprometimento da gestão municipal frente ao tratamento da pandemia, a ação desta quarta-feira não levou em conta a ascensão da COVID-19 que infectou 5.682 pessoas e matou 371 no Estado.
Inaugurado em 2017 como parte do Programa Redenção, o equipamento atendia cerca de 300 pessoas durante o dia e acolhia 140 durante a noite, segundo informações divulgadas pela prefeitura.
Ainda de acordo com a polícia, por estar localizado na Rua Helvétia, próximo à região de consumo e venda de drogas na Cracolândia, o espaço foi ocupado pelo tráfico.
Em nota, a prefeitura justificou que no novo Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT) II – Glicério, “os usuários de álcool e drogas em situação de vulnerabilidade até então atendidos pela unidade de Atendimento Diário Emergencial (ATENDE) 2, terão atendimento prioritário no novo equipamento”.
Ação de crueldade
Para Nathalia Oliveira, socióloga e cofundadora da ONG Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, embora a prefeitura use o combate ao tráfico de drogas como justificativa, a ação não se sustenta.
E não pode ser motivo suficiente para o fim de um projeto de assistência social. Sobretudo em meio à pandemia de novo coronavírus. “A gente tá num período de exceção e a prefeitura fechar esse serviço, sem ter certeza que isso, de fato, vai acabar com o tráfico na região, é só mais um ato de crueldade mesmo. Por que pelo que vi no noticiário a cena de uso (de drogas) já se refez. O que a prefeitura precisa fazer é abrir mais serviços e não fechar os poucos que tem.”
Critica também o fato da gestão usar o fim das aglomerações como motivo, mesmo sabendo, segundo ela, que isso não vai acontecer. “A prefeitura sabe que isso não vai funcionar. Então, não tem outro motivo a não ser crueldade. Por que eles poderiam, inclusive, abrir outro serviço na região, já que alegavam apropriação do tráfico. Só fechar e não oferecer outra resposta, ou achar que as pessoas vão espontaneamente pra outra região, não resolve a situação.”
Para a especialista, o que deve acontecer agora é uma dispersão pelas ruas próximas à Cracolândia e que, eventualmente, o fluxo voltará a se formar por ali.
Ressalta que a principal consequência é que a população em situação de rua perde mais um serviço de atendimento_ mesmo com a abertura do espaço no Glicério. Lembra que a malha de serviços oferecida na cidade é insuficiente em número de vagas comparada às cerca de 12 mil pessoas sem qualquer tipo de assistência no centro da capital. “O impacto direto para os usuários é ter um serviço a menos de assistência social nesse momento de fragilidade. Mas elas tendem a ir e voltar e até já se reagruparam pela alameda Dino Bueno ou mesmo na Cleveland. Então pode ter um impacto passageiro, mas depois retornam.”
Revitalização da Cracolândia
Nathalia acredita que, ainda que a prefeitura não tenha relacionado a ação ao projeto de revitalização, o interesse das gestões municipal e estadual na região é de conhecimento público. “É notório que a prefeitura junto ao governo tem interesse naquela quadra onde fechou o serviço. São as áreas prioritárias para começar o processo de revitalização, as quadras 36,37 e 38. Então cada equipamento fechado ou imóvel derrubado é passo dado neste projeto.”
Pauta política
Para a coordenadora, o sensacionalismo administrativo em relação à Cracolândia gera ações imediatistas e pouco eficazes à região. “O grande problema da Cracolândia, que é um desafio para os gestores e quem lida com isso, é que ela nunca sai do ar. Então sempre que tem pressão da opinião pública, os gestores acabam dando uma resposta. Mas a resposta que se constrói é sempre um planejamento pontual. Nunca uma ação efetiva de garantia de direitos pra quem, nesse momento, tem os direitos ainda mais fragilizados.”
Fechamento vai contra orientações do próprio governo
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo entrou com uma ação civil pública contra a Prefeitura em relação ao fechamento da unidade do Atende 2.
O documento reconhece a importância deste equipamento para os moradores da região e ressalta que tal atitude do governo municipal “está na contramão de orientações do próprio governo estadual e do Decreto Municipal que decreta situação de emergência durante a epidemia de não interrupção dos serviços essenciais voltados à população em situação de rua, uma vez que é necessário, para além das medidas sanitárias e de controle epidemiológico, desenvolver políticas públicas, ainda que transitórias e emergenciais, de promoção de direitos de grupos populacionais vulneráveis, impactados de forma diferencial pela pandemia. Dentre os grupos vulneráveis estão as pessoas em situação de rua, sobremaneira as situadas na região conhecida como ‘Cracolândia.”