Pessoas trans no esporte: seu lugar no pódio pode ser legítimo?
Afinal, existe algum tipo de fundamento nas críticas contra pessoas trans no esporte, ou não passam de mimimi preconceituoso? Conversamos com especialistas
A foto da nadadora norte-americana Lia Thomas, aparentemente isolada no pódio após tornar-se a primeira pessoa trans a conquistar um título da NCAA em todos os esportes da tradicional liga universitária americana, acalorou o debate sobre a inclusão de atletas transgênero em modalidades esportivas. Lia foi campeã na categoria 500 jardas livres e, como de costume, opiniões sem fundamento inundaram as redes sociais.
Mas afinal, existe paridade competitiva entre trans e cisgênero? Segundo especialistas, a resposta é sim: a disputa é justa.
“Cria-se um dragão, um fantasma, onde não deveria existir”, afirma Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do IPq (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo). “A paridade é uma preocupação que não deveria existir.”
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Com a transição de gênero, o corpo se adequa. “No início, não há essa ‘paridade’, mas é uma questão de meses ou anos – vai depender de cada pessoa. Quando isso se estabelece, aí não existe vantagem, não existe privilégio”, completa Saadeh.
Lia iniciou a terapia de reposição hormonal no primeiro semestre de 2019 e realizou testes de testosterona por 36 meses.
Segundo Eric Seger de Camargo, formado em Educação Física e mestre em Educação pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), a pergunta sobre a “paridade física” entre pessoa trans e cis carrega pressupostos ideológicos, e não fisiológicos.
A transição de gênero provoca uma transformação física profunda.
“Para homens trans, o período inicial da transição é parecido com uma puberdade de um cisgênero”, explica Seger. “Dentro de um referencial cis, estes dados mostrariam uma equivalência com as referências cis. Existem mudanças físicas que podem modificar parâmetros esportivos, mas isso também depende da experiência de treinamento de cada pessoa. Ou seja, a hormonização em si não vai transformar alguém em atleta.”
A repercussão do caso com Lia, portanto, faria parte de uma ideia tacanha sobre a transgeneridade.
Saadeh rejeita a necessidade de se criar grandes questionamentos, grandes discussões. “Competir é um direito dessas pessoas”, conclui.
Vale lembrar que, neste momento, a participação de pessoas trans em competições internacionais é muito pequena, numericamente falando.
“De imediato”, pondera Seger, “é preciso criar condições de equidade para pessoas trans praticarem esportes, em todos os níveis. Ponto final.”
O que diz o COI sobre atletas transgênero?
No fim de 2021, o COI (Comitê Olímpico Internacional) publicou as diretrizes para a inclusão de atletas trans em federações internacionais, no item de “não presunção de vantagem esportiva”:
“Nenhum atleta deve ser impedido de competir ou deve ser excluído da competição com base em uma vantagem competitiva injusta não verificada, alegada ou percebida devido a suas variações de sexo, aparência física e/ou status de transgênero.”
Esse é um dos resultados de décadas de luta para elegibilidade de atletas transgênero em competições olímpicas.
Em 2004, na Olimpíada de Atenas, o COI admitiu atletas trans na competição, mas a entidade exigia cirurgia adequada à identidade de gênero.
A cirurgia de adequação de gênero deixou de ser exigida em 2015, quando foi determinado um nível mínimo de testosterona para mulheres trans para entrar na categoria feminina.
O trabalho de pesquisa de Joanna Harper, reconhecido mundialmente, foi determinante nesse início de mudança de paradigma.
Apenas nos Jogos Olímpicos de Tóquio, realizado em 2021, no entanto, atletas transgênero competiram de forma oficial pela primeira vez.
Não foi transfobia
A nadadora Erica Sullivan (que está com um chapéu de cowboy na foto que viralizou), assumidamente lésbica, negou que Lia tenha sido isolada por ser trans e disse que a foto foi tirada do contexto pela dita direita conservadora com a intenção de causar polêmica.
Segundo ela, a imagem registra apenas um momento no pódio em que ela e as outras competidoras, que são amigas e já participaram de torneios internacionais juntas, registraram o evento.
Erica havia afirmado publicamente que apoia Lia. Pouco antes da competição, inclusive, ela escreveu um artigo para a revista “Newsweek”, elogiando a nadadora trans por sua dedicação e afirmando ter orgulho da colega de esporte.
O “CIStema”
Quando se pensa na questão da pessoa trans, o padrão que vemos no esporte e, de forma mais abrangente, na sociedade atual é a cisnormatividade. Ou seja, os corpos cis seriam os “verdadeiros” e, consequentemente, o corpo trans seria “falso”. Daí a ideia tola de que um transgênero estaria “trapaceando” no jogo.
“Existem também proposições que vêm de certezas sociais, que aferem que mulheres precisam ser inferiores, mais fracas, menos atléticas, e ficam procurando como justificar isso através de hormônios, músculos etc.”, diz Seger.
“Essa é uma discussão muito mais profunda, entretanto, do que a questão mais imediata das pessoas trans no esporte. Na realidade imediata, as pessoas trans têm muito pouco acesso aos esportes.”
Segundo ele, essa preocupação de equivalência é muito anterior a uma necessidade real e serve ao oposto: “manter as pessoas trans inexistentes ou escanteadas”, avalia. “Quando uma mulher trans não se destaca no seu esporte, ela é ignorada. Quando ela se destaca, a justificativa é que ela teria uma vantagem.”
O homem trans enfrentaria outros problemas. “Se ele não se destaca, é porque tem uma desvantagem do sexo biológico. Se ele se destaca, o acusam de doping”, afirma o especialista.
“Enquanto isso, na materialidade, as pessoas trans pouco acessam esses espaços, inclusive para poder saber mesmo se existe qualquer vantagem. É justo querer manter os espaços para todos, mas, até o momento, a materialidade dos esportes é dominada por pessoas cis.”
Esportistas transgênero
Além de Lia Thomas, há outros atletas trans que se destacam, mas a participação está longe da “invasão transgênero nos esportes”. Abaixo, conheça alguns:
- A corredora italiana Valentina Petrillo, primeira mulher transgênero a competir em uma paraolimpíada.
- Pedro Petry, competidor faixa marrom de jiu-jitsu da equipe Checkmat.
- A neozelandesa Laurel Hubbard, levantadora de peso que competiu na Olimpíada de Tóquio.
- Tifanny Abreu, jogadora de vôlei brasileira.
- Chris Mosier, primeiro atleta transgênero a se qualificar para o Mundial de duatlo (ciclismo e corrida).
- Renée Richards integrou a equipe universitária de tênis na Universidade de Yale e é a primeira transexual a disputar um torneio profissional nesse esporte.
- Chelsea Wolfe, atleta reserva na equipe norte-americana do ciclismo BMX.
- Alana McLaughlin, lutadora de MMA profissional.