Transludica, a primeira loja colaborativa trans do Brasil
O projeto foi criado por Fernanda Kawani Custódio e Guttervil Guttervil com o objetivo de incluir pessoas trans no mercado de trabalho
Aos 28 anos, Fernanda Kawani Custódio, mulher trans, nunca teve um emprego CLT. Graduada em cosmetologia em 2010, ela decidiu criar um projeto para incluir seu corpo no mercado de trabalho e ajudar outras pessoas trans a empreenderem.
Assim nasceu a Transludica, a primeira loja colaborativa trans do Brasil. A iniciativa foi criada no fim de 2018, em parceria com o produtor cultural Guttervil Guttervil, de 40 anos, que é agênero, e atualmente tem dois pontos de venda fixos em São Paulo, além da loja online com entrega para todo o Brasil.
Durante 10 anos, Fernanda sobreviveu fazendo “bicos” para se sustentar e pagar o aluguel, mesmo quando já estava formada. “Eu tive muita dificuldade nesse processo de transição de gênero. As pessoas não sabem nos tratar nas empresas, por isso acontecem muitos casos de disforia e preconceito”, relata à Catraca Livre. “Elas não me olhavam como um corpo que poderia estar ali, exercendo a profissão de esteticista. Elas me olhavam como uma travesti que deveria estar na noite se prostituindo, na marginalidade.”
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Com 27 anos, ela entrou para o teatro e conheceu Guttervil, mesma época em que conseguiu um emprego em uma loja. No percurso que fazia diariamente para trabalhar, passava pela rua Rêgo Freitas, onde muitas travestis se prostituem, e em frente à Endossa, uma loja colaborativa. “Então, eu juntei as duas coisas e me questionei: por que pessoas trans também não podem empreender? Foi aí que pensei em criar a Transludica”, explica.
Juntos, Fernanda e Guttervil construíram um modelo de como seria esse novo negócio e logo começaram a fazer um bazar na praça Roosevelt, em um espaço cedido por um refugiado, para prospectar clientes. “A cada dois meses, durante seis meses, fizemos o bazar, tentando uni-lo à questão artística porque a minha veia é no teatro”, afirma o produtor cultural.
No fim do ano, eles juntaram o dinheiro que haviam guardado e investiram para ter um espaço físico, na rua Augusta 865, inaugurado em 8 de dezembro. Depois, a Transludica abriu outra unidade na mesma rua, mas no Baixo Augusta, no número 1.405.
“Escolhemos a Augusta por ser uma rua de aceitação de LGBTs, onde esse público frequenta e se sente mais seguro, além de ser de fácil acesso”, relatam os idealizadores do projeto.
A Transludica
O nome da loja foi criado por Fernanda. “A palavra lúdica representa o fazer com prazer e diversão. Quando a gente fala em abrir uma loja para pessoas trans, não é pelo dinheiro, este não é o objetivo. A ideia é criar uma rede”, explica ela. “A gente criou um projeto de marca. Por enquanto, temos apenas o comércio varejista. Mas queremos ser uma plataforma de trabalhos, com varejo e prestação de serviços, como cabeleireiros, fotógrafos, etc. só para trans e travestis”, completa.
Para se tornar um dos colaboradores da Transludica, há apenas um critério básico: ser trans. “A gente não se importa se é produção própria ou revenda. Se trabalhamos com corpos que não têm emprego, que dirá corpos que têm poder de compra?”, questiona Fernanda. “Se a pessoa tem um pequeno dinheiro para investir em brincos na [rua] 25 de Março, por que a gente não daria essa oportunidade? Buscamos abrir espaço para esses corpos, dissidentes, principalmente desempregados”, reitera.
A ideia é que haja rotatividade entre os colaboradores, em média de três meses. Hoje a marca atua em duas pontas: a primeira, uma linha segmentada, com produtos feitos para pessoas trans, como “binder e calcinha para as manas”, como diz Guttervil; a segunda, itens feitos por trans, mas destinados ainda para outros públicos, como cisgêneros. “70% dos nossos clientes ainda são cis, devido ao poder de compra”, conta ele. Além disso, há outros produtos, como eróticos sensoriais e veganos, pochetes, bonés, livros, etc.
De acordo com eles, a recepção da iniciativa tem sido surpreendente. “No princípio, ficamos com medo e não sabíamos se o dinheiro que investimos iria voltar. Decidimos arriscar porque é algo que a gente acredita. No final, tivemos boa receptividade e retorno financeiro também.”
Mensalmente ou bimestralmente, Fernanda e Guttervil destinam uma porcentagem do lucro líquido para instituições de acolhimento de pessoas trans, como o Instituto Florescer e a Casa 1. Em dezembro, fizeram ações com as “manas” trans que trabalham com prostituição e, em janeiro, com outras que moram na rua.
Transfobia e inclusão
Mais do que um negócio, a Transludica quer incentivar o empreendedorismo das pessoas trans para que elas saibam investir capital, receber, colocar taxas. “As mulheres trans ainda estão historicamente condicionadas à prostituição, enquanto uma porcentagem bem grande de homens trans está desempregada devido à invisibilização e à negação de suas existências”, afirma a empreendedora.
Para ela, a sociedade está em um processo de desconstrução social com a inclusão dos corpos trans no mercado de trabalho. “É algo muito novo ter uma pessoa trans dentro das empresas. Onde era o lugar que você nos via? Na televisão e na rua, se prostituindo. E a gente não pode negar nem invisibilizar essas pessoas que continuam nas ruas”, diz.
“Eu consegui sobreviver a todos esses preconceitos até o ponto de amadurecer e falar: não, eu não posso aceitar que a sociedade me condicione para sempre. Se eu não correr atrás de um emprego, de dignidade, eu continuarei naquela posição para sempre”, finaliza Fernanda.
Saiba mais sobre a Transludica por meio do site ou do Instagram.