Coluna do melhor cronista da Folha gera confusão nas redes

Muita gente pensou que a Folha tinha perdido seu melhor cronista – e o melhor cronista da imprensa brasileira.

Virou uma comoção nas redes.

Mas foi uma confusão por causa do final da coluna.

Antonio Prata escreveu:

Amanhã começo uma longa viagem. Vou da Praça da Sé até Vancouver, de patinete elétrico, ouvindo “Deixa a vida me levar”, no repeat, em busca de uma iluminação. Esta é minha última crônica. Adeus.

Ele teve de publicar nota negando saída do jornal.

Essa é a coluna:

Eu não escolhi Arial: era a fonte no computador do meu pai quando, em algum momento do colegial, os professores passaram a pedir os trabalhos digitados. Em Arial escrevi sobre mercantilismo, mitocôndrias, hiatos e ditongos. Ao ganhar meu primeiro computador, na época da faculdade, por força do hábito, devo ter colocado Arial como padrão. Em Arial passei pelo curso de filosofia, depois cinema, depois ciências sociais, em Arial eu não me formei e em Arial virei escritor.

Ilustração
Adams Carvalho
Pensando bem, acho que escolhi Arial —várias vezes. O que quero dizer é que não foi uma escolha refletida, tipo, “gosto de Arial porque é limpa e magra e a discrição formal é tudo que espero das letras para maximizar a compreensão de um texto sem chamar atenção sobre si”. Não. Eu herdei a Arial do meu pai, como herdei 23 cromossomos, o sobrenome e a profissão. E, como grande parte do que trazemos do berço, jamais questionei a fonte com a qual escrevo há duas décadas e meia.

Três semanas atrás, porém, eu estava numa pousada em Mauá, precisava escrever a crônica e por algum mistério da informática o computador se recusava a aceitar Arial. Quando eu tirava da Times New Roman, dava um pau e o Word fechava. Pela primeira vez na vida, escrevi um texto inteiro numa outra fonte.

No começo, estranhei. Ao contrário do que dizem por aí, o hábito faz, sim, o monge: vestir minhas ideias diariamente com o mesmo tipo de letra criou em mim uma leve xenofobia tipográfica. Times New Roman sempre me pareceu tanto antiquada quanto pedante. Suas serifas —esses rodapés das letras— me lembravam calças boca de sino. Via Times New Roman e imaginava um chato citando filósofos numa festa no final dos anos 1970. Lembra daquele mala na fila do cinema em Annie Hall, falando de McLuhan? Times New Roman, total.

O chato dos anos 1970 me incomodou durante um ou dois parágrafos; aí, lá pelo terceiro, algo curioso aconteceu. Não é que o mala tenha me abandonado —continuavam lá as serifas—, eu é que fui me acostumando. Lá pelo quarto parágrafo, comecei a gostar. Os rodapés em cada letra davam às palavras uma solidez que eu jamais tivera com a Arial. Os Is pareciam hastes de guarda-sóis sobre suportes de concreto. Os Hs, mesas de mogno. Imaginei aqueles Ms tendo que ser carregados por seis homens em caso de copy-paste. Perto daquelas letras, minha Arial lembrava um monte de palitos de fósforo.

Quando terminei a crônica, gelei. A fonte era magnífica, meu texto, não. Em Arial, minhas frases eram superiores à fonte. Mais profundas do que ela. Eu era como um adulto entre crianças. Em Times New Roman, minhas ideias soavam pueris. Eu era uma criança entre adultos. A forma era superior ao conteúdo. Era suco Del Valle em taças de cristal. Abandonei o texto, verti dezenas de crônicas e meus últimos livros para Times New Roman e reli tudo, sofregamente, até o sol raiar, iluminando a minha mediocridade.

Talvez, se tivesse começado a carreira em Times New Roman, houvesse chegado mais longe, puxado pelas exigências da fonte. Teria aprendido a sustentar minhas ideias com a solidez daquelas serifas. Mas não. Preferi o caminho fácil. Questiono agora se a própria opção pela escrita não foi preguiçosa, irrefletida. Eu não escolhi ser escritor. Simplesmente me sentei no computador do meu pai e segui adiante. Era isso que eu queria? É isso o que eu quero? Sou feliz?

Amanhã começo uma longa viagem. Vou da Praça da Sé até Vancouver, de patinete elétrico, ouvindo “Deixa a vida me levar”, no repeat, em busca de uma iluminação. Esta é minha última crônica. Adeus.