Suzano: o melhor texto sobre ódio nas redes secretas na internet

16/03/2019 11:36 / Atualizado em 11/09/2019 11:56

As redes secretas da internas, mais conhecidas como “chans”, viraram foco de atenção no Brasil depois do massacre na escola de Suzano, onde os atiradores são saudados como heróis.

O Canal Meio fez um excelente texto sobre essas redes

Nos últimos dias de agosto, em 2014, uma série de fotografias e vídeos íntimos de mulheres conhecidas, algumas delas grandes estrelas, apareceram repentinamente online.
Contavam-se não às dezenas, mas às centenas. Em menos de uma semana, o número de arquivos passava do milhar. As vítimas incluíam as atrizes Jennifer Lawrence e Kirsten Dunst, a modelo Kate Upton, a cantora Ariana Grande.
A existência de uma coleção assim, exposta num repente, parecia sugerir uma internet paralela, alguma espécie de submundo digital no qual quem tinha acesso a estas fotos as trocava, talvez vendesse.
Foi no site 4chan que as imagens apareceram em público pela primeira vez. O mesmo site no qual o grupo hacker Anonymous surgiu. Onde boa parte da neo-direita radical americana se formou e debateu até construir seu discurso e as táticas usadas online.
Um fórum de discussão que opera no limite da legalidade, às vezes cruzando a linha, e que serviu de inspiração para inúmeros outros. Um site que já chegou a ser o 56º mais visitado do mundo.

O australiano supremacista branco que, na manhã de sexta, entrou em uma mesquita neozelandesa e matou 49 pessoas, anunciou seus planos no 8chan, uma versão ainda mais radical do fórum. Os dois assassinos da escola de Suzano, que mataram sete na quinta, frequentavam o Dogolachan, uma versão brasileira.

Apesar de todo seu radicalismo, a origem dos chans é inocente. Eles são, tecnicamente, o que na internet se chama imageboard.
Um espaço com ambientes de discussão, onde cada usuário pode publicar o que deseja, construídos a partir de softwares muito simples.
A aparência das páginas é rústica que só, remetendo à internet como ela era em meados da década de 1990. O primeiríssimo destes imageboards surgiu no Japão em 1999 e foi batizado 2channel. Era voltado para conversas sobre quadrinhos mangá, desenhos animados anime e videogames.
Lá, os primeiros consoles de jogos Nintendo deviam ser ligados ao aparelho de TV no canal 2. É daí que veio o nome.

4chan nada mais era do que uma versão americana, voltado para conversas sobre os mesmos assuntos. Nasceu em 2003, cria de um estudante de 15 anos chamado Cristopher Poole.

Há outra característica deste tipo de site: são construídos para que sejam anônimos. Ninguém assina seu nome, só se usa pseudônimos.
O sistema não guarda rastros de onde o usuário veio. Quem publica algo ali dificilmente será identificado. E assim, conforme Poole envelhecia e sua gama de interesses se ampliava, novas áreas de conversa foram surgindo. Pornografia de toda sorte, por exemplo, embora os moderadores tentem manter os limites legais respeitados.
Apesar disso, pelo menos seis pessoas já foram presas por posse de pornografia infantil obtida no site.

O 4chan se tornou famoso, também, pela imensa quantidade de trolls — aquele tipo de usuário particularmente agressivo da internet que se dedica ao ataque.
Como ali há uma gigantesca concentração deles, é comum que escolham alvos em conjunto. Um dos casos mais conhecidos foi o da Igreja da Cientologia que, no início de 2008, recebeu uma série de ameaças falsas por todos os meios. Cartas, telefonemas, recados digitais. Seus servidores também foram hackeados. Nesta operação se consolidou o grupo hacker Anonymous que ali, pela primeira vez, adotou por símbolo a máscara com o rosto estilizado do militante republicano inglês Guy Fawkes, no estilo dos quadrinhos V de Vingança (Amazon).

Esta apropriação do Guy Fawkes é um dos ícones pop trazidos ao mundo pelo 4chan. Não há manifestação de rua no Ocidente, hoje, em que alguém não apareça com a máscara.

Um estudo científico recente (PDF) determinou que o fórum Politicamente Incorreto, do 4chan, é a segunda maior fonte de memes da internet mundial. São aquelas imagens com mensagens provocadoras ou engraçadas, fartamente distribuídas.

Politicamente Incorreto é uma das áreas mais populares do site.
4chan é, essencialmente, masculino e jovem. Conforme avançaram as guerras culturais americanas, nestas primeiras duas décadas do século, o anonimato ofereceu a este público um espaço no qual misoginia, racismo e agressividade são permitidos.
E, na possibilidade desta conversa, começou a nascer ali o movimento alt-right, a mais extrema banda da direita política americana, um movimento principalmente jovem, muito hábil nos meandros digitais, que flerta abertamente com os movimentos mais tradicionais de supremacia racial branca.
Esta alt-right jovem é que faz de forma mais contundente a crítica ao politicamente correto na cultura e esteve, desde a primeira hora, entre os grupos de apoio mais entusiasmados da candidatura de Donald Trump.

Não foram poucos os que combinaram em 4chan de irem juntos para a manifestação Unite de Right, que reuniu neonazistas em Charlottesville, em 2017.

Existem duas internets. Uma é esta que usamos no cotidiano e cujo conteúdo está sempre a uma busca do Google. É nela que funciona o 4chan, assim como a maioria dos sites conhecidos.
Mas há outra internet — a dark web. Ela só é acessível através de softwares específicos e algum conhecimento técnico. Pela falta de sistemas de busca universais, com frequência é preciso estar informado de que endereço seguir para encontrar sites específicos. Não se chama dark apenas por ser um lado obscuro da rede mundial de computadores.
É também porque lá é possível comprar números de cartão de crédito roubados, drogas, armas. No limite, na dark web se pode contratar um hacker ou até mesmo um assassino.

Um dos muitos mercados desta internet paralela é o de fotografias e vídeos íntimos. Hackers são contratados para quebrar a segurança de telefones, emails ou outros sistemas para investigar se uma determinada mulher se fotografou nua. Quando se trata de celebridades, não é necessário contratação. Os hackers tomam a iniciativa e, quando conseguem algo, põem o material capturado à venda.
Não são poucos os colecionadores e parte do valor que dão ao conjunto de fotos que reúnem está em sua escassez. Sentem-se, na maioria das vezes, satisfeitos por terem o registro de uma atriz específica, ou uma modelo.

É característica do 4chan que muitos dos rapazes que frequentam o site são tecnicamente hábeis o suficiente para também frequentar a dark web. Por isto, ali é um dos lugares nos quais conteúdos que só circulam na internet paralela vêm à tona na rede pública.
A gigantesca coleção de fotos de celebridades, reunida ao longo de anos, foi tornada pública num conflito de vendedores.
Ao divulgar para o mundo, o homem que jogou tudo no 4chan estava desvalorizando o que o outro tinha para vender.

É um ambiente onde a liberdade de expressão é testada em seu limite com frequência, mas há limites.
Criado em 2013, 8chan tem uma política de total liberdade. Não há limites. É fruto do trabalho de Fredrick Brennan, um programador que tem uma doença congênita que torna seus ossos extremamente frágeis, limita seu crescimento e o condenou a uma cadeira de rodas.
O oito do nome é também referência ao símbolo do infinito. Politicamente radical, Brennan considera que o mundo vem se tornando cada vez mais repressivo.
Percebe o 4chan autoritário nos limites que impõe. Em 8chan, que não é hospedado nos EUA por conta da legislação, há fóruns abertos de pedofilia e corpos assassinados.
O conteúdo, diz Brennan, lhe causa repulsa. Mas ele diz ser contra qualquer forma de censura. Legalmente, não conseguiria sustentar o site. Por isso, conta com um sócio, um também americano chamado Jim Watkins que vive nas Filipinas, onde tem um provedor de acesso à internet e uma fazenda de porcos. É lá que Brennan vive, hoje.

E foi em 8chan que o facínora da Nova Zelândia combinou a matança da mesquita. “Bem, pessoal, é hora de parar de publicar merda e fazer um esforço na vida real”, escreveu algumas horas antes do crime.
Nos chans, a frase é claríssima: cumprir as ameaças constantemente feitas em posts. Foi incentivado. Publicou seu manifesto, carregado das teorias conspiratórias e carga paranóide comum à neo-direita, além de link para uma live no Facebook. Tinha gente esperando para acompanhar a chacina, filmada no estilo de um videogame.

A principal diferença do Dogolachan, a versão brasileira dos chans, é que ele funciona na dark web. Não é acessível por um mero link.
Mas ali circula a mesma repulsa ao politicamente correto, a mesma ideologia de direita radical. Após os dois assassinos da Escola Estadual Raul Brasil terem cometido seus crimes, a conversa no chan não era de remorso.
Era de lamento que seus colegas de fórum não bateram o recorde de Wellington Menezes que, em 2011, matou 11 crianças numa escola do Rio de Janeiro.