A vez e a voz das crianças: por dentro da EMEI Dona Leopoldina

28/09/2017 20:46

“Os pequenos se sentem grandes quando são capazes de tomar decisões difíceis”, diz Marcia Covelo, diretora da EMEI – Escola municipal de educação infantil –  Dona Leopoldina, escola de educação infantil da zona oeste de São Paulo.

Os dizeres acima configuram todo um pensamento sobre infância que a escola nutre, que é pautado sobretudo em duas palavras: autonomia e escuta.

Um dos projetos mais centrais da escola é o Conselho de Criança, em que as próprias crianças decidem quais serão as práticas da escola e atuam diretamente na gestão do espaço. Além disso, tem Estações do Brincar, Saberes e Sabores, Ocupação do Território, Pedagogias Alternativas como yoga, meditação, massagem e arte-terapia e Educação Ambiental (horta, pomar, jardim, minhocário, composteira, telhado e paredes verdes) .

“Um projeto para crianças pequenas, hoje, exige um pensar diferenciado do modelo proposto nas décadas anteriores. Pressupõe um olhar para o papel da infância contemporânea, um olhar curioso, de pesquisador, pois o desejo de curiar e de conhecer é fundamental para a criação de práticas para e com a infância”, defende Marcia.

  • Uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo.” – Paulo Freire
Dançando nas Estações e Estação de Pintura: atividades que promovem a a descoberta e a curiosidade.
Dançando nas Estações e Estação de Pintura: atividades que promovem a a descoberta e a curiosidade.

Por tudo o que esta afirmação significa, ela poderia definir sozinha o Projeto Político Pedagógico do espaço, que se fundamenta na abordagem de Paulo Freire e Loris Malaguzzi.

No mês de agosto, a escola venceu o Prêmio Desafio 2030 – Escolas Transformando o Nosso Mundo, que mapeou e reconheceu as melhores iniciativas educacionais na cidade de São Paulo nos quatro níveis de ensino. Entregue em cerimônia na Unibes Cultural, o projeto tinha o objetivo de avaliar quais das escolas inscritas mais estavam alinhadas com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pela ONU – clique aqui para saber mais.

  • O que são os ODSs? Em setembro de 2015, percebendo que os indicadores econômicos, sociais e ambientais dos últimos anos eram pessimistas quanto ao futuro das próximas gerações, a Organização das Nações Unidas (ONU) propôs que os seus 193 países membros assinassem a Agenda 2030, um plano global composto por 17 objetivos e 169 metas. Dentre eles, estão: assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e alcançar a igualdade de gênero, empoderando todas as mulheres e meninas. Clique aqui para ler todos os 17 objetivos.

Com o projeto “Construindo Viveiros de Infância”, a EMEI Dona Leopoldina se destacou na categoria Educação Infantil, e vem ganhando cada vez mais reconhecimento por suas experiências de aprendizagem.

O Catraquinha conversou com a instituição para entender o que tem por trás de tantas experiências sucessivamente bem-sucedidas. Marcia Covelo Harmbach (Direção), Beatriz Garcia Costa (Coordenadora Pedagógica) e Simone Cavalcante (Assistente de Direção) buscam responder, na entrevista abaixo, as perguntas que mais frequentemente vêm à mente de quem trabalha com educação e infância. Como dar a autonomia à criança de uma forma viável? Qual o papel do educador neste novo cenário? Como integrar a família às práticas da escola?

Catraquinha – O que significou para vocês ter vencido o Desafio 2030 na categoria Ensino Infantil? Como o prêmio foi sentido pelas crianças?

Ficamos muito felizes com o reconhecimento além dos muros da escola do nosso projeto, que tem como um dos eixos a Educação Ambiental. Nossa escola já ganhou outros prêmios, este é o oitavo e sempre traz muita visibilidade para a qualidade da Escola Pública.

Passamos em todas as salas para mostrar a placa de premiação e conversar com as crianças que ficaram mais felizes do que nós. Apesar de não entenderem muito bem tudo o que significa, entenderam que a nossa escola “faz coisas boas para as pessoas, por isso é premiada”. (palavras das crianças).

Catraquinha – Conte um pouco sobre o Projeto Político Pedagógico de vocês. Qual linha pedagógica vocês seguem, quais referenciais de educação procuram tomar como parâmetro?

Buscamos referenciais da Pedagogia Freiriana (Paulo Freire) e Regiana (Reggio Emília/Malaguzzi). Desde 2012 temos trabalhado com nosso Projeto Político Pedagógico  que Possui três eixos: Arte, Educação Ambiental e o Brincar, visa construir condições para a proposição e discussão de espaços educadores trabalhando as relações indivíduo- escola- bairro- comunidade- bioma, sustentando os princípios da alfabetização ecológica  e da permacultura , aliados aos princípios de Paulo Freire sobre a necessidade da construção da autonomia e da relação dialógica com crianças e adultos.

Nosso Projeto visa a reflexão e a construção de tempos e espaços que proporcionem a vivência da  infância, o contato com  natureza: com os quatro elementos: terra, água, fogo, ar. Procuramos transformar a escola em um lugar para  encontros com   as pessoas ,os  bichos, as plantas,  por meio das múltiplas linguagens. Fortalecer o uso e criar espaços educadores para gerar processos de educação ambiental na comunidade escolar. 

  • Nosso objetivo principal é resgatar o espaço do quintal e da rua que as crianças perderam nestes últimos tempos e fomentar momentos para os rituais da cultura da infância.

Através dos Projetos de trabalho desenvolvidos por todos os segmentos buscamos privilegiar o protagonismo infantil, resgatar as culturas populares, fazer uso das múltiplas linguagens, discutir as relações étnico-raciais, refletir sobre a educação para a sustentabilidade e o consumo consciente. 

A pistinha de triciclo foi um pedido das crianças.
A pistinha de triciclo foi um pedido das crianças.

Catraquinha – De que forma os conceitos de Educação Integral e Cidades Educadoras se concretizam na escola? 

Trabalhamos a Organização do Currículo via projetos de trabalho com as múltiplas linguagens de forma a integrar todos os conhecimentos; organizamos turmas mistas para garantir a interação entre todos e seus diferentes saberes.

Procuramos estar integrados com nosso território, ocupando espaços do entorno: clube, feira, praças, Museus, assim como a parceria com as famílias e comunidade em geral, trazendo-os para a escola e visitando seus espaços.

Temos muitos voluntários que trabalham com as crianças: professores de Yoga, Capoeira, Ong Organicidade, Educativo do Museu da Casa Brasileira. Proporcionamos Vivências na escola – teatro, atividades culturais propostas pela escola (festa da família: “Quem cuida de mim”, festa da cultura popular brasileira, festa: Nossas raízes, entre outros) e pela comunidade: Espetáculo Chulos, Festival latino-americano de narradores itinerantes: Eu conto, tu contas, Mediação de conflitos, culinária com as Pancs entre outros.

Catraquinha – Como a autonomia está presente na vida das crianças?

Em todos os momentos trabalhamos com a autonomia, seja no cuidado com o espaço, com o corpo, com o outro, nas decisões, nas escolhas. O Conselho Mirim é um dos grandes espaços para o exercício da autonomia e protagonismo das crianças auxiliando a gestar a escola contribuindo com o olhar infantil.

Nas Estações do Brincar, as professoras montam ambientes pela escola e as crianças escolhem as atividades das quais desejam participar, com qual amigo, com qual educador, e o tempo de permanência em cada espaço. O lanche também fica à disposição no refeitório durante a tarde e as crianças escolhem o tempo de lanchar.

Toda a nossa rotina é pautada em ações que desenvolvam a autonomia das crianças, pois este é um dos grandes fazeres da Educação Infantil, principalmente nas escolas de tempo integral.

Catraquinha – O professor e filósofo Jorge Larrosa dizia que o grande equívoco da educação moderna foi supor que sabiam exatamente quem era a criança, e, portanto supor que poderia antecipar suas necessidades. Vocês concordam? Na opinião da escola, o que é infância? E qual o papel do educador na vida das crianças?

Um projeto para crianças pequenas hoje, exige um pensar diferenciado do modelo proposto nas décadas anteriores, pressupõe um olhar para o papel da infância contemporânea, um olhar curioso, de pesquisador, pois o desejo de curiar, de conhecer é fundamental para a criação de práticas para e com a infância.

  • As crianças têm infâncias diferentes, pois cada uma carrega sua subjetividade, sua história. Esse é um dos papéis dos educadores: propiciar o conhecimento de mundo para a apropriação de saberes e transformação da realidade, tanto das crianças quanto dos adultos.
A horta e o pomar são cuidados pelos pequenos. Na foto, os tomatinhos e alfaces colhidos do pé.
A horta e o pomar são cuidados pelos pequenos. Na foto, os tomatinhos e alfaces colhidos do pé.

Catraquinha – Pode nos contar um pouco sobre o Conselho das crianças? Como é organizado e conduzido, e como os educadores acompanham as decisões dos pequenos?

Muitos teóricos e teorias sobre a Infância apontam para a necessidade do trabalho com o protagonismo infantil, com o dar vez e voz às crianças, e nosso projeto procura transformar essa teoria em prática.

O “Conselho de Crianças” possibilita qualificar e valorizar o olhar da criança em igualdade com o dos adultos, repensando a escola. Espaços onde podemos ouvi-las, contrapondo às vezes a fala dos adultos, porque as visões sobre as coisas são diferentes, e o trabalho deve ser realizado pelas crianças e não somente para elas.

  • Nossos grandes objetivos são: proporcionar a participação das crianças na gestão democrática; contribuir para o diálogo entre crianças e adultos, respeitando a cultura infantil; qualificar e valorizar a visão das crianças em igualdade com o dos adultos; fomentar a autoria das crianças na reflexão e tomada de decisões sobre assuntos de interesse da escola; problematizar a realidade local e apontar encaminhamentos.

Em 2012, iniciamos o projeto, ouvimos as crianças sobre o cotidiano que viviam na EMEI, lançamos questões sobre o que achavam da escola, sobre os tempos e os espaços. Percebemos pelas falas que alguns espaços não eram ocupados, e que algumas práticas não eram bem aceitas. A fala das crianças sempre serve de mote para as discussões com os adultos, para pensarmos em um tempo e uso do espaço que venha de encontro com as expectativas da infância.

A dinâmica de funcionamento consiste em dois encontros mensais com a equipe gestora, sendo uma Assembléia com todos os alunos e uma Reunião com os representantes das salas. Cada turma é representada por um menino e uma menina. Nas Assembleias elencamos um tema para ser discutido e os representantes levam as discussões para as salas e no encontro seguinte trazem a devolutiva e os registros através das várias linguagens (desenho, colagem, pintura, escrita, oral).

Cada representante socializa o que trouxe e discutimos sobre o tema proposto, partindo dos diversos pontos de vista, constituindo assim uma roda de conversa sem didatização da escuta, um espaço para falar e ouvir, provocar as contradições, ouvir o que diz sim, o que diz não para algo e fundamentar as hipóteses levantadas.

E assim procuramos dar ação à voz das crianças e o que projetavam em seus pedidos e viam acontecer, como: construção de quadra de futebol de areia com lugar para assistir aos jogos, pista de triciclos, subir em árvores, cidade para brincar com miniaturas, parque sonoro,  casinha de bonecas com móveis, mesinhas para fazer comidinhas, cabanas, corda para escalada, observatório de pássaros e até uma casa na árvore, cujos desenhos das crianças foi transformado em um projeto arquitetônico pelo arquiteto do Museu da Casa Brasileira: Fred e executado pelo Sr. Ângelo, avô de uma das crianças.

Catraquinha – Os chamados grandes marcos do desenvolvimento da criança têm papel importante no planejamento dos projetos, certo? Como a escola conduz essa abordagem?

Acreditamos que o papel do educador é de orientar os pais, sendo parceiros nos momentos do desfralde ou do uso da chupeta e mamadeira, e auxiliá-los na tarefa de retirar no tempo adequado.

Muitas vezes, percebemos que os pais incentivam o uso de chupetas e mamadeiras porque não querem perder os seus bebês, ou porque desconhecem o quanto podem prejudicar a dentição, a mastigação, a articulação e a dicção em nome da comodidade.

Enquanto escola, em parceria com a UBS Alto de Pinheiros, próxima à nossa unidade,  realizamos  rodas de conversa e  grupo de formação de pais  As fonoaudiólogas Eliana e Cristiane orientam e sanam as dúvidas das famílias sobre a questão do uso da  chupeta, da mamadeira, do “dedo na boca” e de como facilitar a retirada desses hábitos sem uma ruptura tão  drástica. Afinal, são objetos de afeto, e devem ser tratados com muito cuidado.

Outra contribuição da escola é socializar as conquistas, pois as crianças em grupo são incentivadas pelos amiguinhos, pela observação e pelo relato de quem já conseguiu se desprender desses hábitos.

Na EMEI Dona Leopoldina, desenvolvemos um projeto muito interessante que se chama “Pé de Chupeta e Mamadeira”, que foi iniciado com a professora Mariza Massa, muito preocupada com o grande número de crianças da sua turma que não se alimentava direito e apresentava uma dicção difícil. Hoje, esse projeto faz parte das atividades permanentes de todas as turmas, e é realizado durante todo o ano, no tempo de cada criança.

O “Pé de Chupeta e Mamadeira” e a florada do ipê branco, no quintal da escola.
O “Pé de Chupeta e Mamadeira” e a florada do ipê branco, no quintal da escola.

Primeiramente, a professora conversa com crianças e pais para o levantamento dos hábitos orais, e pergunta se há necessidade de tomar leite na mamadeira – uma vez que na escola tomam leite no copo – e se há necessidade da chupeta em casa, pois na escola nem lembram que ela existe.

As crianças discutem o assunto, relatam experiências, e a professora apresenta o famoso “Pé de chupeta e mamadeira”, explica que o ipê branco adora receber chupetas e mamadeiras e em troca ele retribui com sombra gostosa, folhas verdinhas e flores lindas. Nossa escola tem um trabalho especial com a Educação Ambiental e as árvores são muito queridas e respeitadas pelas crianças, que logo se apaixonam ao ver a florada.

Há todo um ritual: a criança que deseja entregar sua mamadeira ou chupeta escolhe uma cor de fita de tecido onde é escrito o seu nome, amarra a mamadeira ou chupeta, escolhe um galho e presenteia a árvore ao mesmo tempo em que canta em roda com o grupo uma música criada para esse momento.

A professora diz que é preciso ter coragem e vontade para deixar esse presente e que a árvore ficará muito feliz toda enfeitada pelas chupetas e mamadeiras antes da sua florada, porque se  sente triste somente com seus galhos.

Observam a árvore, enfatizam como ficou bonita, colorida, ao mesmo tempo em que se confortam ao saber que seu objeto de afeto está ali, pertinho delas, no meio do parque, onde podem brincar e contemplar aquele objeto tão querido.

As crianças que não usam chupeta ou mamadeira, os desenham e  penduram  uma frase dizendo  o motivo: que nunca usou, ou que nunca  gostou, ou que os pais nunca ofereceram.

O mais bonito de tudo é que nosso ipê floresce todo ano lindamente, e cada vez mais nos dá sombra e flores, as crianças ficam encantadas com a retribuição da natureza que coincide com a época do ano que mais crianças entregam suas mamadeiras e chupetas.

  • Nesse projeto, trabalhamos com a autoria e o protagonismo dos pequenos que se sentem grandes quando são capazes de tomar uma decisão tão difícil, cada um ao seu tempo, respeitando-se as singularidades e os desejos.

Catraquinha – Como vocês conduzem a relação escola-família, e qual a importância dessa aproximação? Há interferências negativas dos pais, em algum sentido?

A construção de parcerias com as famílias é realizada de forma a integrar as ações da escola, da família e as diversas visões de mundo. Um trabalho cotidiano realizado na entrada e saída das crianças, na reunião de pais com formação, nas oficinas, mutirões, reuniões de Conselho de Escola, entrevistas, bilhetes via agenda, mural, entre outros.

Diariamente, temos pais na escola que nos ajudam conforme é possível. Alguns ficam pela manhã, outros à tarde. No início do ano, conversamos sobre o que os pais gostam de fazer  e como podem nos ajudar na escola, fazemos reuniões e um calendário de ações para a atuação de cada um dos voluntários nos nossos vários trabalhos: horta, ateliê de costura, de arte, biblioteca, conserto de brinquedos e livros, culinária, aula de yoga para as crianças, meditação e música. Cada qual contribui com sua aptidão ou nos indica pessoas que possam nos ajudar.

O nosso Conselho de Escola é super atuante, os pais opinam, sugerem, estabelecem uma parceria real e muito comprometida com o Projeto Político Pedagógico da escola.

Eles nos ajudam até mesmo na resolução de problemas com alguns pais ou crianças, temos uma mãe que trabalha com comunicação não violenta e faz roda de conversa com os pais e psicodramas envolvendo situações de conflito e posterior discussão no grupo.

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