Maria Firmina dos Reis: 1ª romancista do Brasil desafiou o racismo e escreveu seu nome na história

Escritora maranhense é a primeira mulher negra a ser homenageada pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2022

03/10/2022 10:40 / Atualizado em 07/11/2022 10:12

Muitas vezes pioneira, Maria Firmina dos Reis escreveu seu nome na história brasileira como a primeira mulher a publicar e assinar um romance no Brasil. Mais ainda, a autora eternizou-se por conseguir este feito, até então inédito, numa sociedade racista, mesmo sendo uma mulher negra, e por inaugurar e antecipar o gênero literário dos romances abolicionistas no país, cujos títulos mais notórios só apareceriam décadas depois. Em 2022, Maria Firmina escreve mais um capítulo da história ao tornar-se a primeira autora negra homenageada pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

E não para por aí. A autora de Úrsula (1859) foi a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no Maranhão para o cargo de professora do primário e, com isso, sustentou-se sozinha numa época em que este feito era raro e até mal visto na vida de uma mulher. Oito anos antes da Lei Áurea, Firmina criou a primeira escola mista para meninos e meninas, que durou poucos anos devido à polêmica que provocou na cidade de Maçaricó, em Guimarães.

Divulgação/Grupo de pesquisadores de Maria Firmina dos Reis
Divulgação/Grupo de pesquisadores de Maria Firmina dos Reis - Divulgação/ Grupo de pesquisadores de Maria Firmina dos Reis

Em 1975, graças ao trabalho de José Nascimento Morais Filho (1922 – 2009), intelectual negro e ativista maranhense, ensaísta, poeta e ambientalista, filho do célebre intelectual e militante histórico da luta antirracista Nascimento Morais (1882 – 1958), que reuniu no livro Maria Firmina: Fragmentos de uma Vida os resultados de uma pesquisa minuciosa a partir do agrupamento de diferentes tipos de registro, a autora sairia definitivamente do anonimato. O livro representa ainda outro marco, por ser considerado o primeiro diário redigido por uma mulher a ser publicado no Brasil.

Presença constante e ativa na imprensa local, Firmina chegou a publicar poesias, ficção, crônicas e colaborou assiduamente com vários jornais literários. Isso num contexto em que mulheres escritoras de destaque eram exceções raras e, quando conseguiam romper o ciclo de apagamento e publicar, muitas vezes o faziam apelando a pseudônimos e estratégias de anonimato.

Apesar das dificuldades, Maria Firmina dos Reis teve uma atuação importante como militante e intelectual e dedicou sua longa vida (viveu 92 anos) a ler, escrever, pesquisar e ensinar. Atuou ainda como folclorista na coleta e preservação de textos da literatura oral e também como compositora, criando, inclusive, um hino pela abolição da escravização.

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Nascimento, infância e formação

Maria Firmina dos Reis nasceu na Ilha de São Luís, no Maranhão, em 11 de março de 1822, mas foi batizada somente em 21 de dezembro de 1825, sem informações sobre a paternidade e a data de nascimento. Em 1847, no processo de inscrição no concurso público da cadeira de primeiras letras da vila de São José de Guimarães, Maria Firmina solicitou nova certidão de justificação de batismo, onde informou a data de nascimento como 11 de março de 1822, e o nome de sua mãe, Leonor Felipa, ex-escravizada.

O contato de Firmina com a literatura começou cedo, em 1830, quando mudou-se para a casa de uma tia mais abastada, em São José de Guimarães. Ali, a jovem entrou em contato com referências culturais diversas e com parentes ligados ao meio intelectual, como Sotero dos Reis, um popular gramático da época. Quando se tornou professora, em 1847, Firmina já tinha um posicionamento antiescravista bem articulado. Não era fácil para uma mulher expor sua opinião contra a escravização, principalmente tratando-se de uma mulher negra. Foi o respeito alcançado como professora que abriu espaço para a autora lançar seu primeiro livro, o romance Úrsula, quando, enfim, conseguiu expressar-se pública e enfaticamente sobre o tema.

Úrsula, um romance revolucionário

Em Úrsula, publicado em 1859, a autora critica a escravidão por meio da humanização de personagens escravizados, que têm voz própria e contam suas histórias e tragédias, o que a coloca muito à frente dos textos abolicionistas de então. Revolucionária para o seu tempo, a obra situa-se como primeiro romance abolicionista de língua portuguesa; e, possivelmente, o primeiro romance publicado por uma mulher negra na América Latina. O livro denuncia os traficantes europeus como “bárbaros”, e se contrapõe ao discurso que busca justificar as colonizações como empreendimentos civilizatórios.

Úrsula foi a primeira obra brasileira com um posicionamento claro contra a escravidão e contado a partir do ponto de vista dos escravizados, antes mesmo de Navio Negreiro, de Castro Alves (1880), e de A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães. Além da crítica ao regime escravocrata, a autora traz com o livro uma visão de África como um território de civilizações e liberdade, inédita até então na literatura brasileira.

O livro inova ainda ao propor uma abordagem inteseccional entre gênero e etnia, trazendo uma forte crítica tanto ao patriarcalismo quanto à escravidão, aspectos cruciais para a compreensão crítica da realidade nacional. Não é sem razão, portanto, que estudiosos da obra da escritora como Eduardo de Assis Duarte, autor de Úrsula e a desconstrução da razão negra ocidental defendem que o romance inaugurou a literatura afro-brasileira.

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Em 1861, a autora lança o folhetim Gupeva, narrativa curta de temática indianista, publicada na imprensa local. Em 1871 publica o livro de poemas Cantos à beira-mar, de caráter mais subjetivo e melancólico, mas ainda assim crítico ao patriarcado escravocrata. Alguns anos depois, em 1887, já estabelecida como escritora e professora – e com a força do movimento abolicionista já mais mais difundida no Brasil –, publica A Escrava, um conto que traz uma crítica ainda mais incisiva, entrando de cabeça no debate em torno da abolição já ativo nesta altura no país.

Resgate e reparação

Maria Firmina dos Reis faleceu em 1917, pobre e cega, no município de Guimarães. Esquecida por décadas, sua obra só foi recuperada em 1962 pelo historiador paraibano Horácio de Almeida em um sebo no Rio de Janeiro – e, hoje, até seu rosto verdadeiro é desconhecido. Muitos dos documentos de seu arquivo pessoal se perderam e até o momento não se tem notícia de nenhuma foto sua daquela época.

Nos registros oficiais da Câmara dos Vereadores de Guimarães está uma gravura de uma mulher branca, inspirada em uma escritora gaúcha, com quem Firmina foi confundida na época. O busto da escritora no Museu Histórico do Maranhão também traz uma Firmina “embranquecida”, de nariz fino e cabelos lisos. A imagem digital reproduzida aqui foi elaborada a partir de retrato falado colhido por Nascimento Morais Filho, biógrafo da autora.

A partir de 2017, por ocasião do centenário da morte de Firmina, seus livros vêm sendo relançados e, em 2022, ela foi escolhida como autora homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Mas ainda sabemos pouco sobre outros possíveis textos da autora e mesmo sobre os detalhes de sua vida. Não por acaso, a biografia escrita por José Nascimento Morais Filho, em 1975, se chama Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

Ainda há um longo caminho para recuperar a história e as produções de Maria Firmina dos Reis e dar-lhe o devido destaque e valor e, neste contexto, o trabalho de estudiosos como o biógrafo Morais Filho e diversos outros,  são fundamentais. Esperamos que a Flip possa representar mais um passo em direção a uma nova era para a produção e a memória de Maria Firmina e que, num futuro breve, ela possa enfim ser lida e estudada em larga escala como a heroína que de fato foi.