Identidade, arte e resistência: conheça as representantes de SP na nova temporada do Drag Race Brasil

Representando São Paulo na segunda temporada do Drag Race Brasil, Mercedez Vulcão e Bhelchi falam de superação, arte e visibilidade drag

30/06/2025 19:04

Com trajetórias distintas, mas igualmente marcantes, Mercedez Vulcão e Bhelchi são as representantes de São Paulo na segunda temporada do reality show Drag Race Brasil, que estreia dia 10 de julho no WOW+. Ambas têm em comum a paixão pela arte drag, a vontade de romper padrões e o desejo de transformar o que fazem em plataformas de expressão, visibilidade e liberdade. Em entrevista à Catraca Livre, elas falam sobre suas histórias, desafios e o impacto de levarem seus trabalhos a uma das maiores vitrines da cultura queer no mundo.

Identidade, arte e resistência: conheça as duas representantes de SP na nova temporada do Drag Race Brasil
Identidade, arte e resistência: conheça as duas representantes de SP na nova temporada do Drag Race Brasil - Arquivo pessoal

O teatro como berço e combustível para a drag

Para Mercedez Vulcão, a relação entre teatro e drag não é apenas simbólica, mas visceral. Formada em Artes Cênicas pela Unicamp, ela conta que essa interseção surgiu naturalmente. “Quando comecei a fazer drag, a primeira coisa que me ocorreu foi: preciso juntar os dois universos. E me parece um caminho natural, haja vista que a drag existe há muito tempo dentro do teatro”, explica. Ela relembra os tempos do teatro de Shakespeare, quando os papéis femininos eram interpretados por homens, e também do teatro de revista brasileiro, onde as vedetes inspiraram transformistas da época.

Em sua trajetória, Mercedez se dedica a resgatar esse elo. “O teatro tem, ao meu ver, uma relação direta com a arte drag.” E essa fusão foi levada ao palco com ousadia em uma montagem de “Rei Lear”, onde todas as personagens foram interpretadas por drags. “Shakespeare era pop, a gente só se esqueceu disso”, afirma ela, lembrando que os textos do dramaturgo britânico eram populares na época elizabetana, assistidos tanto por nobres quanto pelo povo.

Estética exagerada e inspiração almodovariana

A estética de Mercedez também carrega fortes influências do cinema de Pedro Almodóvar. “Na minha adolescência, eu era maluca pelos filmes dele! Toda aquela estética, aquelas figuras queer e femininas potentes e provocadoras me inspiraram muito”, diz. A personagem Patty Diphusa, uma pornstar criada pelo cineasta, foi um ponto de partida para sua busca drag. “Acho que esses exageros, essa expressão hiperbólica e não-realista é algo que gosto de explorar na drag.”

E é justamente essa dramaticidade que ela leva às performances. Considerada uma “lipsync assassin”, Mercedez afirma que sua força está no palco. “Tudo que envolve o lado performático da drag me deixa muito segura. Gosto sempre de trazer algo pra música que está ali, mas não está sendo dito claramente.”

Desconstruindo a masculinidade com salto alto e vulnerabilidade

A construção de sua drag também passou por um processo pessoal profundo. Mercedez revela que iniciou essa jornada durante um momento de ruptura com padrões de masculinidade. “Eu vinha do teatro, onde existia uma ideia implícita de que meu lado afeminado atrapalhava minha capacidade de interpretação.” Fora dos palcos, também enfrentava cobranças internas para ser forte, autossuficiente e pouco vulnerável.

Foi nesse contexto que a drag surgiu como uma ferramenta de libertação. “Já são 10 anos onde a drag me ensina diariamente a ser uma pessoa melhor”, resume. O processo envolveu um mergulho nas próprias dores, traumas e fragilidades. “Sempre tem alguma ideia rígida a se desconstruir.”

Com alma de atriz e corpo de estrela, Mercedez Vulcão transforma Shakespeare em pop e o palco em resistência.
Com alma de atriz e corpo de estrela, Mercedez Vulcão transforma Shakespeare em pop e o palco em resistência. - Arquivo pessoal

Bhelchi: uma drag nascida da pandemia e forjada na superação

A história de Bhelchi, por sua vez, começou de forma totalmente diferente: no isolamento da pandemia. Professora e bailarina, ela viu sua rotina agitada se esvaziar de repente. Foi quando um amigo a convidou para participar do curso “Maquiagem na Persona Drag”, ministrado por Follet Drag – que se tornaria sua mãe drag. “Foi o escape que eu precisava, ter esses momentos de pesquisa e, mesmo que online, conviver com outras pessoas”, relembra.

A drag nascida nesse contexto sombrio virou luz para a artista. “Sem dúvidas não foi só uma descoberta, foi um presente.”

Música, moda e emoção no palco

O nome artístico de Bhelchi é uma homenagem direta ao cantor e poeta Belchior. E essa conexão com a música também reverbera na moda. “Belchior não é só música, é poesia, história, crítica, alerta, assim como a moda também é expressão”, explica. Sua drag é um mosaico de referências afetivas e artísticas, que busca provocar e emocionar ao mesmo tempo.

Com uma sólida formação em dança, Bhelchi leva ao palco uma performance refinada e coreografada. “Mesmo que o tempo tenha passado, e eu não seja o mesmo de anos atrás, é a bagagem que trago comigo.” Apaixonada por ensaios, ela se diverte com o processo criativo: “Amo ensaiar, construir performances, no outro dia assistir e mudar tudo (risos)”.

Autonomia criativa e desafios de produção

Uma das marcas de Bhelchi no Drag Race Brasil é o fato de ter criado todos os seus looks sozinha. “Por questões financeiras, e também por querer mostrar minhas habilidades como designer, criei e costurei todos meus looks, tudo foi 100% feito em casa.” Foi um processo intenso, com dias de correria, mas extremamente gratificante.

Apesar de não revelar detalhes dos figurinos, ela adianta que se preocupou em transmitir histórias. “Não simplesmente levar um look que agrade as pessoas, mas sim looks que tivessem algo a contar.”

Nascida na pandemia e forjada na dança, Bhelchi une força, delicadeza e estilo em cada performance.
Nascida na pandemia e forjada na dança, Bhelchi une força, delicadeza e estilo em cada performance. - Arquivo pessoal

Representando São Paulo e além

Levar o nome de São Paulo para o palco de Drag Race Brasil é algo que emociona ambas as artistas. Para Mercedez, é uma “baita responsa”, dado o número de drags talentosas na cidade. “É também, de certa forma, um reconhecimento pelo trabalho que já venho desenvolvendo há uma década”, diz.

Bhelchi, por sua vez, quase desistiu da inscrição de tão nervosa. “São Paulo tem tantas Drags que eu admiro, grandes nomes da noite, e também muitos talentos sem oportunidade.” Ela quer mostrar que, assim como muitas outras, está na luta por espaço, trabalho e dignidade.

A cena drag paulista e a luta por visibilidade

As duas artistas fazem questão de frisar que a cena drag de São Paulo não é homogênea. Mercedez representa especialmente o movimento das drags do teatro, que ela ajuda a fomentar desde o início da sua trajetória. “Quero mostrar não só que somos capazes de impressionar nos palcos, mas também somos capazes de encabeçar projetos, produzir, realizar, abrir novos espaços na cena artística.”

Bhelchi amplia o olhar para todo o Brasil. Ela lembra que, embora São Paulo ainda tenha uma cena maior que outros estados, a realidade da arte drag é marcada por desafios. “Mostrem apoio não só nas redes sociais, que também é importante, mas vão aos shows, vão apoiar a drag que tá aí pertinho de você.”

Bastidores da competição e emoções à flor da pele

Ambas relatam que o maior desafio durante as gravações do Drag Race foi o tempo. “Você não tem tempo para pensar, tem que tomar decisões rapidamente”, diz Mercedez. A intensidade do processo a pegou de surpresa. “Eu não sou uma pessoa facilmente emocionável e fiquei surpresa que lá eu estava com as emoções à flor da pele.”

Bhelchi, por sua vez, enfrentou um turbilhão emocional logo no início. “Minha maior dificuldade foi o psicológico, entender que estava ali realizando um sonho meu, depois de tantos anos me dedicando a sonhos de alunos.”

O impacto do Drag Race e os sonhos que vêm depois

Ambas as artistas veem o programa como uma ferramenta poderosa para a valorização da arte drag no Brasil. Mercedez acredita que o programa “fura bolhas” e ajuda a humanizar a arte drag. “Nossa maior luta é para que as pessoas entendam que drag é ARTE.”

Bhelchi concorda e acrescenta que o público precisa entender que drag não é só peruca ou boate. “Temos bailarina, apresentadora, designers, drag do teatro, Miss… artistas que levam anos de estudo e dedicação.”

Para o futuro, os sonhos são ambiciosos. Mercedez quer furar bolhas, fazer mais teatro, audiovisual e lançar músicas autorais. Bhelchi sonha com uma companhia de dança de drag queens, visibilidade para sua arte e – por que não? – estabilidade. “Se não for sonhar muito.”