O que o ‘luto’ da Copa nos ensina sobre a vida
Os 7 a 1 para a Alemanha aconteceram outro dia mesmo, e já temos de chorar por uma desclassificação para a Bélgica
“Mas o que eu vou fazer durante 4 anos?” A pergunta era legítima, e séria, na perspectiva de um menino de 11. Afinal, ele se referia a um período de tempo que correspondia a mais de um terço de sua vida inteira até então, uma infância que enfim, naquele ano de 1982, havia descoberto o futebol. A novidade surgia para ele com pompa e circunstância, rolando macia pelos passes precisos de Zico, Sócrates, Júnior e Falcão, ícones daquele timaço que era a Seleção Brasileira na Copa da Espanha.
Pela primeira vez em sua existência de pouco mais de uma década, vira o pai soltar fogos de artifício, ali mesmo no pequeno jardim que ficava ao lado da sala em que a TV mostrava a razão de toda a euforia. Até aquele 5 de julho, uma campanha invicta: 2 a 1 de virada na extinta URSS (futebol também é geopolítica), duas goleadas de 4 x 0 sobre Escócia e Nova Zelândia e um 3 a 1 sobre a Argentina de Maradona na estreia da segunda fase – a fórmula de disputa do Mundial era diferente da atual, não havia mata-matas logo depois da primeira etapa do torneio.
Era uma segunda-feira, 5 de julho de 1982 – acabo de pesquisar pra escrever este texto. O menino certamente não teve aula naquele dia por causa do jogo em questão, Brasil versus Itália, Brasil jogando pelo empate. Comoção nacional por um favoritismo que parecia inviolável. Como paralelos na vida, algo como aquela promoção no emprego já anunciada e que parece ser questão de horas para se consumar, ou o primeiro encontro com uma pessoa que aparentemente já deu todas as letras de que é só partir pro abraço.
Itália? Que Itália? Sim, nossos caminhos são cheios de Itálias. O que era líquido e certo foi-se esvaindo pelos chutes certeiros de Paolo Rossi, carrasco azul naquela derrota por 3 a 2. Mas como? Não estava tudo tão seguro até então? O menino chorava ao rezar para uma imagem de Menino Jesus de Praga, que ficava num santuário de madeira em seu quarto. Isso quando saiu o terceiro gol deles e era preciso reunir forças para buscar o empate mais uma vez. Como se o chefe chamasse para uma conversa sobre aquele aumento e dissesse que, bem, “Estamos repensando em virtude da crise”. Ou o/a crush pedisse licença durante o jantar para ir ao banheiro e… cadê? Para onde foi? Cadê a felicidade que estava aqui? Saiu pra comprar cigarros e não voltou.
Ou o gato comeu – o felino que subiu no telhado, no caso. Mas então quer dizer que… havia acabado? Como assim? Seria preciso começar tudo de novo, e isso só quatro anos depois? O menino de 11 estava atordoado: “Mas o que eu vou fazer durante quatro anos?”
Sim, amigos. A Copa deixa marcas. Pior: é preciso aprender a vivenciar o luto do fim do torneio. Algo comparável, talvez, a um namoro de verão – um mês contadinho – em que você só poderá ver a pessoa de novo após um quadriênio. Mas não será a mesma pessoa; será outra, ou, ainda que a mesma, ela estará mais velha, e você também, transformados pelas experiências, pelos ganhos e pelas perdas ao longo das fases do jogo.
Ao final da partida, naquele 5 de junho, meu pai foi comprar pão, como sempre fazia. Eu fiquei papeando com minha mãe, como de costume, enquanto ele não voltava. Coisas do cotidiano que continuaram a acontecer nas décadas seguintes, mas sob outros ângulos – tipo os replays dos gols –, com outras roupagens, em outras cores, outras padarias, e – principalmente – com menos inocência.
Com o passar do tempo, os períodos de quatro anos foram se comprimindo, como se aquela eternidade entre uma Copa e outra nem fosse assim, digamos, quase infinita. Há 11 anos, vejam só, perdi minha mãe. Às vezes parece que foi ontem. Meu pai ainda vai à padaria, especialmente nas tardes de sábado, domingo ou nos feriados, e me sinto mais feliz pelo gesto dele em si do que pelo calor dos pãezinhos frescos. Os 7 a 1 para a Alemanha aconteceram outro dia mesmo, e já temos de chorar por uma desclassificação para a Bélgica – que, por sinal, fez bela campanha em 1982. Algumas coisas permanecem; outras se vão.
Temos de aceitar as idas e vindas como parte da experiência, assim como aquela tristeza que bate ao final de um mês de jogos de futebol incríveis concentrados em algum ponto do globo. Sim, há muita coisa a ser feita entre uma Copa e outra. Isso aquele garoto de 11 anos descobriu entre tantas intensidades que vivenciou nas entressafras dos Mundiais e durante eles também.
A Copa deixa lições, e não apenas para times, técnicos, jogadores; entre elas, a de que é necessário erguer a cabeça para acertar os passes e deixar os companheiros na cara do gol. Ou simplesmente perceber o quanto é divertido acompanhar o Brasileirão, a Libertadores, a Copa do Brasil, a Champions League. Afinal, a despeito dos terraplanistas, o mundo é mesmo uma bola – e é preciso deixá-la rolar, até o derradeiro apito final.
*Edson Valente é jornalista e escritor, com 4 livros publicados, e se tornou corintiano depois de ver Sócrates jogar na Copa de 82