‘Diversidade não é falar do exótico, e sim de nós mesmos’
Parece um contrassenso que uma das grandes referências em Educação social no Brasil seja formada em Matemática. A educadora paulistana Bel Santos Mayer explica que a escolha, na época, teve relação direta com o próprio sentido da educação. “Estudar matemática parecia ser coisa de gente inteligente”, relembra.
Hoje, o nome de Bel é quase sinônimo de Educação infantil. Em 2009, ela criou a biblioteca comunitária “Caminhos da Leitura“, em Parelheiros, extremo sul de São Paulo. Segundo o último censo do IBGE, de 2010, a comunidade tem o maior índice de vulnerabilidade social da cidade. Bel sonha em transformar o lugar em centro de referência para a criança. E já está conseguindo: a “Caminhos da Leitura” é finalista do prêmio “Brasil Criativo”, na categoria Patrimônio Material – a votação vai até o dia 3 de dezembro, clique aqui para votar.
Bel nasceu em 1967, e atua na área de Educação desde os 14 anos. Sua militância precoce construiu uma trajetória que hoje simboliza a potência da literatura, da discussão da diversidade na educação infantil e dos projetos articulados em comunidade – com e para ela.
- Descubra como aumentar o colesterol bom e proteger seu coração
- Entenda os sintomas da pressão alta e evite problemas cardíacos
- USP abre vagas em 16 cursos gratuitos de ‘intercâmbio’
- Psoríase: estudo revela novo possível fator causal da doença de pele
Seu caminho começou aos 27 anos, quando ganhou uma bolsa para estudar Metodologias Pedagógicas e Pedagogia Social, na Itália. De lá, ela se encantou com o pensamento de Paulo Freire. “Tive que sair do Brasil para me aproximar de um pernambucano”, relembra Bel em entrevista ao Geledés.
Foi desse encantamento que nasceu a profissão que Bel nunca mais deixou. Quando voltou ao Brasil, ela abandonou um emprego estável e bem remunerado para se tornar educadora em ONGs.
O sonho rendeu à Bel, à cidade de São Paulo e a centenas de jovens o trabalho em um dos projetos mais bem-sucedidos na área da educação social do Brasil, o IBEAC (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário).
Hoje, Bel é uma das coordenadoras do Polo de Leitura “LiteraSampa”, projeto socioeducativo de incentivo à leitura que forma mediadores e atua em toda a cadeia de produção do livro. O LiteraSampa é formado por um grupo de organizações sociais e apoiado também pela iniciativa privada.
No último dia 29 de novembro, Bel participou da conferência TEDxSão Paulo, onde palestrou sobre “O poder da literatura nas mãos de crianças, jovens e mulheres”.
O Catraquinha foi conversar com a educadora sobre este e outros temas. Confira a conversa:
Ao olhar para os jovens secundaristas lutando por seus direitos hoje, você vê a adolescente que foi? O que os jovens militantes de hoje têm em comum com a Bel de 14 anos?
Fico muito emocionada ao ver os jovens secundaristas lutando pela EDUCAÇÃO, com letras maiúsculas. Com as ocupações, os jovens defendem o direito à educação de qualidade, mobilizam e convocam a colaboração de pessoas que muitas vezes estavam “do lado de fora”, apenas denunciando as mazelas da escola pública.
Eles e elas têm concretizado um desejo histórico de que a comunidade participe da vida da escola.
Com as ocupações, muitos tiveram a oportunidade de entrar na escola, dar aulas, fazer oficinas, contribuir para a discussão de currículo, ou seja, discutir o que é preciso aprender e compartilhar na escola para que de fato ela seja de todos. A “Bel de 14 anos” também não se conformava com o estado das coisas; não acreditava que a vida fosse um destino dado, e saiu por aí indignando-se e juntando-se a outros adolescentes que também queriam transformar o mundo.
De acordo com sua própria experiência de militância precoce, qual você considera o melhor caminho para estimular nas crianças o interesse pela participação social?
Precisamos encarar a participação como um direito e como elemento essencial para nossa constituição enquanto sujeitos de direitos. E isso se aprende desde pequeno. Ao contribuir na organização da vida doméstica (guardando seus brinquedos, regando as plantas ou doando os brinquedos que não utiliza mais, por exemplo), uma criança aprende que a contribuição dela é importante para o bem-estar da família e a alegria de outras pessoas.
Saindo dos muros da própria residência, a criança e o jovem entram em contato com a diversidade humana; há a possibilidade de aprender a respeitar e valorizar as diferenças ou de ignorá-las. A escola, a mídia, a família têm muita responsabilidade no desenvolvimento ético das crianças e adolescentes.
A discussão dos temas sociais que emergem no cotidiano e a criação de situações concretas de intervenção, como cuidar de um espaço coletivo (uma horta? um jardim? Uma biblioteca comunitária?) pode ser um bom caminho para importar-se com os outros/as; e as crianças não podem estar de fora.
O que a criança ganha ao ser estimulada a ser protagonista, não só no ambiente de ensino, mas também em casa, na rua, na sociedade?
Ao ser protagonista em situações domésticas ou externas, a criança aprende desde cedo que um mundo melhor, uma vida mais saudável e respeitosa para todos/as, depende também da colaboração dela.
Quando isto acontece não é apenas a criança quem ganha. Ganhamos todos nós, com a consciência de que não estamos sozinhos no mundo e de que, aquilo que é essencial para você, é essencial também para os outros.
Questões de gênero, racismo, deficiência. Ainda há muitos tabus dentro da escola. Como vencê-los e naturalizar a abordagem dos temas fundamentais ao desenvolvimento pleno da criança? E como as questões de raça permeiam o seu trabalho como educadora?
Há um post que circulou tempos atrás nas redes sociais, dizendo que “O normal é ser diferente”. Aí está a naturalidade de falar do tema. Falar da diversidade não é falar de um “Outro”, exótico, diferente. É falar de nós mesmos/as. É falar das nossas diferenças e das desigualdades a elas impostas.
Falar do racismo não é falar apenas do que é ser negro/a; é, principalmente, falar do privilégio de ser branco/a numa sociedade racializada.
Ao discutir o machismo, de um lado há o empoderamento das mulheres, mas de outro há a discussão do que significa ser homem numa sociedade em que “mulherzinha” é um xingamento. É preciso, portanto, falar das relações no “cotidiário” que é mais intenso que o cotidiano.
Além do IBEAC, que outras experiências de educação você citaria como bem-sucedidas? E por quê?
Desde a década de 1990, uma parte do meu trabalho consiste em pensar formas de abordar as relações raciais-étnicas e de gênero nas práticas educacionais, ou seja, refletir sobre “Diversidade e Direitos Humanos”. Na Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos, no Estado de São Paulo, desenvolvi com educadores/as uma estratégia para que as crianças falem sobre o assunto: o Prêmio AKONI de promoção da igualdade racial. O termo AKONI, de origem Yorubá, se refere à força e à coragem ancestrais que orientam e guiam a luta por justiça, pela superação do racismo, do preconceito e pela promoção da igualdade racial. Em sua quinta edição (2016), já foram reunidos cerca de 1.500 produções de educandos/as dentre desenhos, Historias em Quadrinho, slogans, fotografias e vídeos. As crianças têm falado “sem medo”, por meio de desenhos e textos, as experiências de humilhação e preconceito que têm vivido e indicado o quê gostariam que nós, adultos/as, fizéssemos.
Outra experiência que gostaria de destacar é o Premio Literário “LiteraSampinha” (assista ao vídeo abaixo para conhecer o projeto), realizado pela Rede de Leitura LiteraSampa, que por meio da abordagem de gêneros literários convida as crianças e adolescentes a falarem de si, das relações humanas e do entorno.
Em 2014, estudaram o gênero Diário, partindo da leitura de “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus, e escreveram diários com o tema “Esta comunidade também é minha”, apresentando leituras, análises e soluções para os problemas que observam.
Em 2015, estudaram o gênero Cordel, e o tema foi “Sou gente, tenho direitos: 25 anos do ECA”. E em 2016, diante da polêmica sobre a inclusão das “relações de gênero” nos Planos de Educação, trabalhou-se novamente com poesia, e escolheu-se como tema: “Me vejo no que vejo: a poesia de ser quem sou”. E as crianças falaram de semelhanças, de diferenças, de desigualdades, de afirmação, de negritude.
Em 2009, você criou uma biblioteca comunitária dentro de um cemitério em São Paulo, um lugar que poucos conseguiam enxergar como potencial ambiente educador. Usando esse projeto específico como metáfora, você diria que a educação é um lugar de resistência?
Ocupar um cemitério com uma biblioteca traz reflexões concretas e simbólicas: levamos histórias e vida para um lugar de memória e ancestralidade, para que a matéria que ali se desfaz não seja esquecida, ganhe novas vidas pelas palavras, pelas metáforas, pelas histórias que são lidas e recontadas.
A educação no Brasil vem sofrendo duros revezes – cortes de governo, fim das compras governamentais de livros, reforma curricular, etc. Diante de tudo isso, como manter firme a ponta mais importante da educação, o educador?
Os educadores precisam confiar em seus educandos e na comunidade, e nós devemos “fiar junto com eles” a educação emancipadora. Como educadores/as não podemos nos render à dicotomia “nós e eles”, que muitas vezes se instaura nos discursos e práticas. Os educandos e educandas querem defender a educação. Boa parte deles quer. Precisamos estar juntos/as.
E, continuando a mesma questão, que ideais te movem como educadora hoje?
Sonho com um país que leve a educação a sério. Sonho com um tempo em que, convencidos/as do poder transformador da educação e da escola pública, a defenderemos com todas as nossas forças, com todos os nossos saberes. E não haverá espaço para a imposição de políticas emergenciais e planos mirabolantes, aos menos favorecidos economicamente, que não levam em conta os educadores/as, os educandos/as e suas famílias. Sonho com o dia em que o direito à educação será garantido para todos/as. Acho que não é sonhar demais.
Leia mais: