Este casal deu a volta ao mundo ouvindo histórias de professores
“Passamos por um processo de dessensibilização. A educação é parte disso”.
É assim que o casal Juliana Ferrari e Vinicius Matsuei definem – se é que algo tão grande caiba em uma única definição – o que é “educar para humanizar”. Seja como for, a frase faz lembrar uma outra, do educador Jorge Larrosa: “Tudo está organizado para que nada nos aconteça”, ele diz, referindo-se ao excesso de informações e estímulos a que somos submetidos todos os dias sem que nada seja efetivamente absorvido.
E o que isso quer dizer? Para Larossa, significa que estamos vazios de experiências.
Com essa inquietação se movimentando dentro da cabeça e trocando as certezas de lugar, Juliana e Vinicius decidiram ‘largar tudo’ e partir em uma viagem com destino certo: a educação. Os dois – ela psicóloga e ele designer – juntaram as economias e criaram o projeto “Teachers of the world” (“Professores do mundo”), com o objetivo de dar a volta no globo para contar histórias de professores. No site, eles dividem as experiências e narrativas que colheram pelo caminho, em forma de textos e imagens.
Os relatos mostram que, apesar da diferença cultural, social e política dos entrevistados, muitos demonstram ter angústias parecidas: querem honrar a responsabilidade de ter nas mãos o rumo da vida de uma criança.
A viagem durou cerca de dez meses – começou em novembro de 2015 e terminou em setembro deste ano. Durante o trajeto, os dois passaram por 27 países da Ásia, Europa e Oceania, como Nova Zelândia, Japão, China, Rússia, Finlândia e Portugal. Povoados de todas essas histórias, os dois estão agora em fase de gestação da próxima etapa do projeto, que deve virar um livro e um documentário. Confira abaixo o primeiro teaser do filme:
Professores do mundo: o que eles têm em comum?
Eles queriam saber o que move a profissão de professor. Mas, afinal, descobriram? “Aquela coisa de que o professor tem que ser psicólogo, assistente social, médico, conselheiro familiar, nutricionista e tudo mais: isso está, em maior ou menor escala, em quase todos os discursos”, relembram.
Porém, apesar do clichê, o que parece ser o maior denominador comum entre um professor brasileiro, paquistanês ou japonês, ainda é o ‘amor pela profissão’. “Ver uma criança sair de um lugar e chegar a outro”, ouviram de um deles. E isso é muito.
Educar para transformar
Durante as entrevistas, os dois foram percebendo coisas que talvez já soubessem sobre o ofício, mas que, colocadas em perspectiva, ajudam a formar um panorama global de como a educação é considerada em diferentes culturas e contextos sociais e políticos.
Hoje, são muitas as definições que eles têm na ponta da língua se alguém perguntar “o que é ser professor?”, mas uma delas se destaca.
“Educar para humanizar é colocar a criança em contato com aquilo que nos faz diferentes e, por isso, especiais. É ensiná-la a comparar usando adjetivos que remetem a características específicas de cada pessoa e objeto, e afastá-la das palavras ‘melhor’ e ‘pior‘. É uma educação para a identificação”, explicam.
Mas como fazer isso em um cenário que se repete em quase todos os países – desvalorização, baixos salários, precarização – ? Para eles, o caminho é a empatia entre professor e aluno. “O olhar e a escuta afetiva são as primeiras coisas que precisamos recuperar”.
Para saber mais sobre essa história, o Catraquinha foi conversar com os dois. Confira a entrevista:
Uma volta ao mundo para contar histórias de professores. O que motivou essa jornada ?
Vinicius – Os motivos que nos fizeram viajar são muitos. Nós dois somos formados na área de Humanas, e as preocupações com o futuro da educação só cresciam à medida que nos aproximávamos da realidade educacional. Muitas decisões políticas nos preocupavam. A Ju trabalhava em uma colégio em São Paulo, e diariamente conversávamos sobre o quão problemático era o cenário que compunha a organização escolar, enquanto percebíamos que isso não era um caso isolado. Ela pediu demissão e, enquanto nós tentávamos explicar o que sentíamos e o que queríamos fazer, fomos questionados: “Por que vocês não abrem uma escola? Vocês tem uma formação boa, amigos que querem a mudança. O que é preciso para que vocês façam isso?”. Essas questões foram nossa motivação inicial para viajar. Queríamos trazer algo de novo para a educação brasileira e sair pelo mundo “caçando” isso. Mas, conforme a pesquisa de mestrado da Ju ia se desenvolvendo (sobre a desvalorização docente e os estereótipos de professores nas telenovelas brasileiras), os professores foram se aproximando dessa nossa empreitada e tomando lugar central na jornada. Quem melhor que eles para nos dizer o que é realmente necessário para transformar a educação?
O que é, na visão de vocês, ‘educar para humanizar’?
Juliana – Passamos por um processo de dessensibilização. A educação é parte disso – talvez a mais importante. Estamos a cada dia sendo expostos a estímulos mais chocantes, músicas mais altas, letras mais repetitivas, discursos gritantes e sem conteúdo. É arte que virou mercadoria, gente que virou objeto. A coisa toda nos desumanizou de uma forma cruel. Você vê a dificuldade que é para um adulto sentar e ouvir alguém falar, especialmente quando essa fala não inclui aparatos tecnológicos e variações assustadoras do tom de voz. Imagine para uma criança.
“Educar para humanizar é educar para o sensível, para o toque, o sussurro, a comida sem sal nem açúcar, com o gosto que tem e o cheiro de quem fez.”
Nas histórias que entram pelo ouvido, a criança consegue elaborar os monstros e medos do tamanho que ela aguenta. Quando a imagem determina o tamanho desse monstro, ele pode ser maior que isso, o que faz com que as expectativas sejam atualizadas para coisas cada vez maiores. Educar para humanizar é trazer a criança de volta para os sons, os cheiros, os toques, os gostos e para os detalhes de cada rosto, cada objeto.”
É colocá-la em contato com aquilo que nos faz diferentes e, por isso, especiais. É ensiná-la a comparar usando adjetivos que remetem a características específicas de cada pessoa e objeto, e afastá-la das palavras melhor e pior. É uma educação para a identificação. Em suma, a criança se torna capaz de ver diferenças, encontrar beleza nelas e, por reconhecer uma ampla gama de detalhes, encontrar aquele um que a faz identificar-se com o outro, seja ele pessoa, planta, animal ou objeto. Esse um é justamente o que vai torná-la incapaz de prejudicá-lo ou se ser intolerante de qualquer forma.
A educação no Brasil vem sofrendo uma série de revezes preocupantes, como a reforma curricular que desobriga o ensino de ciências humanas como Filosofia e Sociologia. Como vocês acham que podemos, individualmente, lutar para a valorização da educação?
Vinicius – Nós não nos desligamos das notícias no Brasil enquanto viajávamos. Sofremos com a luta dos estudantes secundaristas, com o massacre dos direitos de professores e de todos os envolvidos com a educação pública de qualidade. Acompanhamos a estruturação desse sistema que visa destruir o que é público para que os brasileiros se sintam desesperados por uma intervenção privada e estrangeira. Mas, desde que chegamos, isso tudo veio como um soco no nosso estômago. Nós inclusive adoecemos por perceber o tamanho desse retrocesso.
“Pensa, você viaja para buscar coisas lindas para melhorar sua casa e, quando volta, descobre que um bandido entrou e levou o que tinha de mais básico. É difícil lidar com isso. Individualmente, pensamos que o olhar e a escuta afetiva são as primeiras coisas que precisamos recuperar. Estamos sentindo a necessidade de espremer a cara das pessoas (igual avó faz quando vê a gente depois de um tempo), chegar bem pertinho delas e dizer: ‘Olha pra mim. Eu sou assim, igual a você’. “
Juliana – É preciso oferecer outros discursos e olhares, sem bater de frente. A via do afeto é a mais segura no momento (talvez não seja a mais eficiente; diante de violência, o afeto soa como provocação). Esses dias, li numa camiseta que é um tempo bom para “andar amado”, e é bom saber que o ser humano costuma amar apenas aquilo ou aqueles com quem se identifica. Logo, a luta é pela identificação.
“Tenho brincado que falta amor, falta interpretação de texto, mas falta mesmo – falta muito, faz uma falta tremenda – a consciência de classe.”
Falta os professores se reconhecerem parte de uma classe trabalhadora, de um grupo que goza dos mesmos direitos e sofre com os mesmos deveres, independentemente do sistema em que estão. Falta o pai e a mãe, que também são trabalhadores, se identificarem com os professores e com os estudantes. A gente está tentando fazer isso, contando histórias de seres humanos, trazendo detalhes para ver quem consegue achar aquele “um” que nos une. A nossa luta individual tem formato de contação de história.
A profissão de professor não é valorizada como deveria. Como os professores que vocês entrevistaram fazem para se manter estimulados e inspirados?
Vinicius – A valorização é algo que nós chamamos de “prestígio” durante a viagem. É claro que são termos distintos, sabemos que valorizar implica criar condições materiais de existência e efetividade da profissão. Quanto a isso, as respostas foram quase unânimes. É engraçado e triste perceber que todos riem quando perguntamos, por exemplo, sobre a remuneração.
“Não é pelo dinheiro”, todos repetem. E poderia ser, afinal, é uma profissão como qualquer outra. Mas o que percebemos nas entrevistas é que grande parte da motivação vem da relação com os estudantes e da possibilidade de transformar suas vidas”.
“Ver o sorriso das crianças”, “Acompanhar o crescimento delas”, “Ver uma criança sair de um lugar e chegar a outro”, são as coisas que mais ouvimos. Há também algumas doses de nostalgia e admiração por figuras professorais que fizeram parte da vida dos entrevistados. Eles reconhecem que foram transformados pela ação de professores. Eles se mantém estimulados por razões diversas: às vezes pela estabilidade do emprego, pelo fato de trabalharem com crianças ou por não se considerarem aptos a realizar outras tarefas. Mas a inspiração é resultado direto desse relacionamento com as crianças e com o futuro.
Falar em prestígio, por outro lado, tem a ver com a relação com a figura do professor, com essa imagem profissional. Quanto a isso, percebemos mais diferenças. No Japão, por exemplo, existe um prestígio diferente de quase todos os lugares que visitamos. Talvez porque o professor tenha uma responsabilidade imensa sobre a vida dos alunos, o que o faz responder a uma parcela considerável de responsabilidades sociais. Talvez porque reconheçam que a educação só é possível através desse profissional. Em outros países, o prestígio foi traduzido em liberdade, como na Finlândia, por exemplo. Toda a transformação que deu origem ao que hoje conhecemos como a melhor educação do mundo veio de um momento de liberdade que “acidentalmente” permitiu que os professores tomassem todas as decisões sobre suas aulas. O reconhecimento disso é o que chamamos de prestígio.
Se isso se converte em motivação e inspiração para os professores, é uma outra história. Há uma diferença no discurso da professora japonesa, um profissionalismo que nós não encontramos em outros lugares. No discurso Finlandês, isso se traduz em uma certeza sobre a responsabilidade sobre as aulas e sobre o aprendizado como tarefa. Só para retomar esses dois exemplos que nos pareceram distintos. A regra geral dos demais países parece mais com a nossa: um professorado sacerdote, que realiza seu trabalho por um compromisso moral e “por amor”.
Depois de todas as histórias ouvidas, vocês conseguem identificar qual o fator comum entre todo professor – tanto em relação à motivação para ensinar quanto às dificuldades?
Juliana – A motivação é sempre a relação com a criança, o compromisso com a próxima geração. Isso está presente em quase todas as falas. Em relação às dificuldades, a questão do excesso de missões do professor é uma realidade quase que mundial. Aquela coisa de que o professor tem que ser psicólogo, assistente social, médico, conselheiro familiar, nutricionista e tudo mais. Isso está, em maior ou menor escala, em quase todos os discursos. O professor Antonio Novoa, de Portugal, diz que os professores acolheram essas tarefas todas “generosamente” e que hoje sofrem com a dificuldade em encontrar o papel exato que desempenham na sociedade e na escola. Nossas conversas parecem ter confirmado muito dessa teoria.
Confira alguns depoimentos que o projeto colheu no Japão, Indonésia, Paquistão e Brasil.