‘Tornamos o aprender uma tarefa muito difícil nas escolas’

Do nosso parceiro Portal Aprendiz

Crianças crescendo entre muros, com horários controlados, uma longa lista de atividades extracurriculares, brinquedos que falam e telas: falta tempo livre para a brincadeira acontecer sem amarras, objetivos e estímulos, mas também convívio no espaço público e senso de comunidade. Para o psicólogo evolucionista Peter Gray, do Boston College, autor do livro Free to Learn (Livres para aprender, em tradução livre).

Peter Gray

Em entrevista concedida ao Portal Aprendiz, o estudioso da infância, que também mantém um blog no Psychology Today, chamado Freedom to Learn, fala sobre educação infantil, brincar livre e sobre a importância para a criança de crescer em comunidade.

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De que maneira as crianças estão naturalmente equipadas para aprender? 

Eu venho da psicologia evolutiva e é por isso que creio que, ao longo de milênios de evolução, nossas crianças foram selecionadas por processos que garantiram sua sobrevivência. E nós não teríamos sobrevivido sem a habilidade de aprender de forma natural. Veja bem, nem sempre os pais acreditaram que era sua função educar integralmente uma criança. Então elas aprendiam brincando umas com as outras, simulando e jogando com suas realidades. Nós temos um instinto natural para o autodidatismo. O que eu tento descrever no meu livro é que até hoje, nas sociedades modernas, esses instintos de aprendizado ainda estão em funcionamento. Se nós promovemos oportunidades de auto-aprendizado, socialização e brincadeira, elas vão ter um aprendizado significativo.

Como a educação tradicional lida com isso?

O que nós entendemos hoje como educação tradicional surgiu quando o objetivo da educação não era o pensamento livre, o aprendizado, a formação crítica e criativa: o objetivo era treinamento de obediência, para que as pessoas obedecessem seus mestres e senhores sem questionar. Além disso, havia as escolas religiosas, que tinham como missão ensinar a doutrina bíblica, ou seja, não era educação, era doutrinamento. Acontece que ainda estamos presos a essas escolas. E elas operam suprimindo o desejo natural de aprendizagem, reprimindo a curiosidade, dizendo que não importam as questões que o indivíduo tem, apenas importam as questões trazidas pelo currículo, uma educação que não enxerga o brincar, o jogar e a socialização como parte do aprendizado e que diz que as crianças não devem agir de maneira independente. Nós tornamos aprender uma tarefa muito difícil em nossas escolas.

Você afirmou, em uma entrevista, que nunca foi tão difícil para as crianças do mundo acharem tempo para brincar. E que estamos muito preocupados em torná-las adultas, cheias de atividades e não existem espaços de livre convivência e jogo. Por que isso é importante?

Ao longo da história, o brincar é maneira pela qual as crianças adquirem estrutura física, emocional, intelectual e social. Ao brincar, nós simulamos um mundo no qual é possível praticar as habilidades que serão necessárias ao nos tornarmos adultos de fato. Hoje, as crianças têm muito acesso aos computadores e telas, então eles vão ali buscar o brincar, eles sabem “desde os ossos” que aquilo é importante e vão ali tentar brincar e entender o mundo que elas terão que enfrentar. Mas é na brincadeira de risco, livre e ao ar livre que se consegue lidar com problemas complexos, por exemplo, é subindo numa árvore ou até brigando uns com os outros, que eles aprendem a lidar com raiva e medo sem se autodestruírem. As crianças precisam de todo o tipo de brincadeira, até das mais arriscadas.

Em um artigo, você enfatiza que as crianças precisam da sua comunidade para se desenvolverem integralmente. Você afirma isso baseado numa pesquisa sobre o povo Efe, que ainda mantém um estilo de vida próximo ao dos caçadores-coletores, e dividem o cuidado com as crianças. Isso lembra, na prática, um velho ditado que diz que para educar uma criança você precisa de toda uma vila. Como nós podemos traduzir esses ensinamentos em direção a um cuidado mais comunitário de nossas crianças?

Eu acho que, com o tempo, nós começamos cada vez mais a viver em famílias nucleares isoladas. As crianças vão encontrar outras pessoas não em comunidade, mas só na escola. Elas estão virtualmente isoladas de outros adultos e elas precisam deles. Elas precisam sentir que existem diversos adultos que se importam com elas. Elas não são desenhadas para aprender apenas com seus pais porque, honestamente, muitas vezes, eles não são as melhores pessoas (risos). Elas precisam de diferentes modelos de vida para poder escolher qual melhor serve às suas necessidades individuais, ao que elas querem ser.

Eu acho que as escolas que seguem a metodologia Sudbury conseguem proporcionar esse tipo de vida comunitária,  as crianças sentem que pertencem a este lugar, fazem as regras de comportamento junto com adultos, podem se dirigir a qualquer adulto e procurar, por conta própria, o que lhes interessa aprender. Acho que isso é uma tradução de formar uma comunidade caçadora-coletora na sociedade moderna. Não é exatamente isso, é claro, mas é uma comunidade onde as pessoas se sentem cuidadas e queridas. E isso é muito valioso.

Nós precisamos desenhar mais formas para que as crianças, em nossas culturas, possam experimentar comunidades de verdade

A Sudbury Valley School, instituição do estado americano de Massachusetts cuja linha de funcionamento inspira outras cerca de 70 escolas em vários países. O modelo Sudbury preconiza que as crianças e adolescentes são movidas por uma natural curiosidade e desejo de aprender. Assim, os estudantes têm total autonomia para decidir como irão aproveitar seu tempo. No período em que estão na instituição, os jovens podem estar envolvidos com leituras, esportes, computação, jogos, música ou ainda uma infinidade de atividades que desejarem. Inclusive, se quiserem ter aula e avaliações convencionais, a escola também as proporciona. Para o modelo Sudbury, o interesse em desenvolver uma atividade é fundamental para o processo de aprendizagem. Por exemplo, o desejo de praticar um jogo de tabuleiro convida a criança a aprender a ler ou a fazer contas; dotando estes conteúdos de significado para ela. Já o exemplo de outros alunos e funcionários, assim como a convivência com eles, são ferramentas do processo de aprendizagem. (Fonte: Centro de Referências em Educação Integral)

“As crianças vão encontrar outras pessoas não em comunidade, mas só na escola. Elas estão virtualmente isoladas de outros adultos e elas precisam deles. Elas precisam sentir que existem diversos adultos que se importam com elas.”

Neste sentido, você considera que abrir as cidades para nossas crianças, e transformá-las em cidades educadoras, em ambientes de aprendizagem, poderia contribuir para o desenvolvimento das crianças?

Sim, é claro. Existem inúmeras oportunidades de aprendizado no ambiente urbano, talvez mais acessíveis aos adolescentes que às crianças, que precisam ser cuidadosamente introduzidas a estes lugares, fazendo uso de museus, zoológicos, playgrounds. Meu filho, quando estava em uma escola Sudbury, passava dias letivos inteiros sozinho no centro de Boston. Ele pegava o ônibus saindo do subúrbio e explorava coisas que o interessavam no centro, indo em museus, livrarias etc. Acho que você sempre está aprendendo como aprender e quando você é livre para buscar seus interesses, para pesquisar o que te motiva, aí sim que seu desenvolvimento pode decolar. A educação precisa ser autônoma, não podemos mais decidir por um grupo inteiro de crianças, exigir que todas elas se interessem pela mesma coisa ao mesmo tempo.

Uma vez, durante uma entrevista, perguntei à fundadora da Riverside School, na Índia, que se assemelha muito ao que você descreve, sobre educação alternativa. Ela me respondeu que a educação tradicional é que era alternativa – alternativa ao aprendizado. Por mais que essa educação que você descreve seja repelida como “utópica”, você acha que é possível imaginar a educação evoluindo para isso?

É difícil imaginar uma escola pública indo até esse grau de liberdade, porque elas têm que responder a uma série de normas, regulações e regras, ou seja, quando há dinheiro público, o governo define o que é a educação. Ainda assim, eu visitei uma escola no estado do Colorado que consegue fazer muito, mesmo recebendo financiamento público.

Acredito que existam muitas outras escolas pelo mundo que incentivem a criatividade e a curiosidade, o pensamento crítico e a liberdade. E, se você parar para observar o mundo de hoje, é exatamente isso que ele está pedindo: criatividade, curiosidade e a alegria de aprender nunca foram tão importantes. Então, por mais que muitas vezes as políticas públicas demorem a alcançar o que é preciso, eu creio que haverá mudanças e as escolas serão centros de aprendizagem.

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Com informações de Portal Aprendiz.