As flores e o Dia Internacional da Mulher
Por Pamela Michelena, da Rede Feminista de Juristas
Com a aproximação do dia 8 de março percebemos diversas manifestações de opinião ligadas ao Dia Internacional da Mulher. Um assunto que sempre me chama a atenção é a dúvida sobre dar ou não flores para as mulheres que admiramos, e, por isso, parei um pouco para pensar no assunto. Devemos dar flores como forma de celebrar esta data? Minha intenção não é problematizar um presente que, na maioria das vezes, é um gesto de carinho. Quero parar para pensar brevemente sobre a condição da mulher na sociedade brasileira.
Vemos que muitos comércios se utilizam desta data para venderem ou simplesmente oferecerem brindes como forma de “valorizar” as clientes, contudo, isso de fato representa uma forma de reconhecimento da mulher ou é mais uma estratégia de venda? Esta empresa de fato possui políticas de igualdade de gênero ou apenas faz uso de um discurso igualitário para lucrar mais? É uma usurpação rasa da data ou de fato promove alguma mudança?
Para muitas mulheres, como é o meu caso, o dia 8 de março é um dia de reflexão, e não tanto de celebração. É um dia em que, pela sua história, as estatísticas da violência contra a mulher no nosso país pesam mais, ficam mais doloridas. É um momento de lembrar que apesar da igualdade formal perante a lei nós ainda não somos tratadas como iguais aos homens na prática. Para falar a verdade, somos tão desiguais, que até morremos em circunstâncias diferentes e mais cruéis. Somos mortas por nossos companheiros, maridos, namorados, irmãos, pais, tios, conhecidos, pessoas que, em tese, não deveriam causar medo, mas que estatisticamente representam o maior número de agressores.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a taxa de feminicídios no Brasil é de 4,8 para cada 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo . Como se não fosse o suficiente, em 2015, o Mapa da Violência (que divulgou dados sobre homicídios entre o público feminino) revelou que, de 2003 a 2013, o número de homicídios de mulheres negras cresceu 54%, passando de 1.864 para 2.875. Nesse mesmo período, a taxa de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.
Isso significa que além do dia 8 nos lembrar que estamos sendo mortas em quantidades que colocam o Brasil entre os primeiros no ranking mundial, especificamente a violência contra a mulher negra continua crescendo sem sequer receber a devida atenção da sociedade ou de políticas públicas adequadas e focadas neste recorte de gênero e raça. Vivemos uma epidemia de violência contra a mulher. Uma epidemia que mata mais do que febre amarela ou qualquer outra doença semelhante, porém sem nenhuma política ou campanha efetiva de combate.
Um exercício simples para verificar este cenário na prática é pesquisar notícias que reportam violências contra homens e, depois, contra mulheres. É possível entender, em poucos minutos, que as circunstâncias dos crimes são profundamente distintas. Enquanto homens são agredidos ou mortos na rua, por desentendimentos com estranhos ligados a diversos assuntos, as mulheres são predominantemente mortas em casa, por pessoas próximas, por questões como ciúmes, brigas de casal, de família etc. Isso, por si só, representa a desigualdade que destacamos como ainda existente, mas que muitas pessoas ainda não reconhecem. A desigualdade de gênero no Brasil não é sutil, como tantos acreditam. Ela é visível e pode ser quantificada.
Diante de fatos assim, não há como ainda afirmar que não existe desigualdade de gênero no Brasil ou que demandas por combate à violência contra a mulher são “mimimi” ou “exageradas”. Quanto mais ignorarmos o cenário assustador em que nos encontramos, mais autorizamos que a cultura de violência de gênero se perpetue para as próximas gerações, nos omitindo frente a um extermínio que ocorre diante dos nossos olhos, mas que não somos sensibilizados para enxergar.
A situação é tão grave que nos confrontamos com isso cotidianamente sem que nos desperte a merecida e apropriada indignação e ação. É provável que todos conheçamos pelo menos uma mulher que é ou foi vítima de violência doméstica, o que mostra o quão presente esta mazela se encontra em nossa realidade, e quão naturalizada nos parece.
Por essa razão, acredito que as flores sejam a menor das nossas preocupações neste momento, pois o dia 8 é um dia de sobrevivência e de resistência, principalmente das mulheres negras e das periferias que acordam antes do sol, andam por ruas mal asfaltadas e mal iluminadas, suportam horas de transporte público lotado para chegar a seus empregos, onde ainda recebem menos que os homens por trabalhos não raro iguais.
O cotidiano dessas mulheres é de sobrevivência e resistência, pois vencem o medo, dia após dia, em circunstâncias de maior vulnerabilidade. Só quem é mulher saberá do medo de andar sozinha em uma rua escura ou do desconforto de utilizar um transporte público lotado onde acontecem incontáveis casos de assédio sexual por dia. Essas mulheres não merecem apenas uma rosa. Merecem rosas todos os dias que enfrentam uma realidade opressora e a superam, muitas vezes, para criar sozinhas filhos que foram abandonados pelos pais, outra realidade comum entre as famílias brasileiras.
Portanto, se o brasileiro médio já se sente injustiçado com tudo o que acontece no nosso país, é importante ter o mínimo de empatia e admiração pelas mulheres guerreiras, que além das adversidades costumeiras enfrentam altas taxas de violência simplesmente por serem mulheres.
No final do dia, com ou sem flor, o que de fato trará conforto e dignidade é a efetiva igualdade de gênero, para que possamos nos sentir seguras dentro das nossas casas, na rua ou em qualquer lugar em que desejemos estar. A flor será bem-vinda como agrado e gesto de admiração, porém é imprescindível que esteja acompanhada de conhecimento da condição da mulher na sociedade, de voluntarismo de agir ao presenciar um assédio, de comprometimentos para eliminar a objetificação e compromisso com o combate à violência contra a mulher no nosso país.