Maria da Penha, uma mulher que sobreviveu na luta
A farmacêutica sofreu duas tentativas de homicídio e lutou durante 19 anos e 6 meses para colocar seu agressor na prisão
Na madrugada de 29 de maio de 1983, Maria da Penha foi acordada com um estouro no quarto. Assustada, tentou se mexer, mas não conseguia. Ela havia levado um tiro. Seu primeiro pensamento naquele momento foi: “O Marco [seu então marido] me matou”.
O homem foi encontrado pelos vizinhos sentado no chão da cozinha da residência, com o pijama rasgado e uma corda no pescoço. Ele criou uma versão falsa da história: afirmou que quatro assaltantes entraram na residência e tentaram enforcá-lo.
A vítima, à época com 38 anos, acreditou por algum tempo no suposto assalto, até o dia em que as incoerências de Marco Antonio Heredia Viveros, economista e professor universitário colombiano, vieram à tona nas investigações. Antes disso, Penha permaneceu quatro meses entre a vida e a morte.
Neste período, a mulher passou por cirurgias em hospitais de Fortaleza, onde nasceu, e, depois, de Brasília. “Pensei que fosse morrer”, relata. Ela só pedia a Deus, todos os dias, para que não deixasse suas filhas – então com 6 anos, 5 anos e 1 ano e 8 meses – órfãs de mãe. As crianças ficaram todo esse tempo com o pai, a babá e a governanta da residência.
Foram meses de resistência para sobreviver à tentativa de assassinato. Após vários exames, ela recebeu uma notícia que mudaria sua vida: não conseguiria mais andar.
Logo que retornou para casa, de cadeira de rodas, Maria da Penha viveu outra violência. Marco tentou eletrocutá-la no chuveiro elétrico, mas a vítima conseguiu se salvar a tempo. Mesmo assim, ainda não tinha noção de que vivia ao lado de um assassino.
Com o interrogatório da Secretaria de Segurança, várias contradições foram encontradas, e as autoridades concluíram que o economista era o autor da tentativa de homicídio. Ele não confessou o crime.
No total, foram 19 anos e 6 meses para colocar Marco na cadeia. Um processo longo e de muita luta, que serviu de exemplo e força a outras mulheres a partir da promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006, que pune a violência doméstica no Brasil.
Infância e relacionamentos
Maria da Penha Maia Fernandes, de 72 anos, passou a infância em Fortaleza, no Ceará. Sua família, de classe média, lhe deu uma educação rígida. Ela estudou em colégio de freira, apenas com meninas na sala de aula, como era comum no período.
Por incentivo de sua avó, que era parteira, Penha decidiu cursar Farmacêutica na Universidade Federal do Ceará.
No segundo ano da faculdade, se apaixonou por um rapaz em uma festa. Algum tempo depois se casou, aos 19 anos, sob a condição de que terminaria os estudos. No entanto, o homem era muito ciumento, e o relacionamento acabou não dando certo.
Após a separação, Penha iniciou uma pós-graduação em São Paulo. Foi na capital paulista que, por meio de amigos em comum, ela conheceu seu futuro marido, Marco Antonio. “Ele era uma pessoa cabeça no lugar, solícito e prestativo, e eu achei que estava acertando na loteria. A gente começou como amigos, namoramos e casamos um ano depois”, conta.
Violência psicológica e agressões
O casamento de Maria da Penha e Marco Antonio, que se naturalizou brasileiro, seguiu bem até o nascimento das três filhas. Desde então, ele passou a ter um comportamento agressivo com ela e as crianças.
“Eu não entendia quem era a pessoa com quem estava vivendo, mas tive que continuar porque não existia nem delegacia da mulher no país”, diz a cearense, que atuava no laboratório de um Instituto de Previdência do estado do Ceará.
E a situação só piorou. Para a farmacêutica, era um sofrimento muito grande conviver com um homem que agredia fisicamente suas filhas e a fazia sofrer uma extrema violência psicológica. A ela, só restava se esquivar na tentativa de proteger as meninas.
“Percebi que a única saída era uma separação, mas que partisse dele. Eu não podia interferir pelos exemplos que via na mídia: as mulheres que tentavam interromper o relacionamento eram assassinadas pelos companheiros”, relata.
Luta e justiça
Diante da comprovação de que Marco Antonio era o autor das tentativas de assassinato, Maria da Penha se viu comprometida em não abandonar a batalha por justiça. “Como eu rezava muito para que minhas filhas não ficassem órfãs de mãe, isso me deu forças para continuar.”
A luta foi ingrata, uma vez que a Justiça brasileira não cumpriu seu papel. O economista foi julgado e condenado duas vezes, mas saiu em liberdade após entrar com recursos.
Mas ela não desistiu: em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil por negligência e omissão pela demora na punição do agressor.
O caso ficou conhecido internacionalmente a partir da publicação do livro “Sobrevivi… Posso Contar”, em 1994, em que a farmacêutica relata sua história de vida.
Com o apoio da OEA, Marco Antonio Heredia Viveros foi condenado em 1996 a dez anos de reclusão. Porém, a prisão veio apenas em 2002, e ele cumpriu menos de um terço da pena. Depois, foi para o regime semiaberto em Natal (RN).
Essa longa batalha trouxe consigo um marco histórico. Em 2006, o então presidente Lula sancionou a lei 11.340, a Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência familiar contra a mulher.
Em todos esses anos, Penha só encontrou o ex-marido em duas ocasiões: nos julgamentos. Ela não sabe onde ele está agora, mas acredita que viva no Rio Grande do Norte.
Por todas elas
Ao entrar no movimento feminista, Maria da Penha se fortaleceu e não desistiu de lutar. A lei que leva o seu nome é considerada uma das três melhores do mundo no combate à violência e já ajudou milhares de mulheres no Brasil.
“As falhas existentes não estão na lei em si, mas nos aplicadores. São falhas oriundas da cultura machista. Alguns delegados, promotores e juízes ainda deixam que o machismo intrínseco na sociedade tenha uma interferência negativa nos casos que julgam”, reflete.
Para a cearense, o maior desafio da lei é que os gestores públicos sejam mais comprometidos em criar políticas para apoiar e orientar as vítimas. Além disso, é preciso que as delegacias da mulher funcionem 24 horas por dia, durante toda a semana, nas grandes cidades.
Aos 72 anos, Penha não deixou a luta de lado. Atua por meio da imprensa, ao divulgar sua história e debater os casos de violência contra a mulher, e dá palestras em instituições.
Campanha #ElaNãoPediu
Nenhuma mulher “pede” para apanhar. A culpa nunca é da vítima. A campanha #ElaNãoPediu, da Catraca Livre, tem como objetivo fortalecer o enfrentamento da violência doméstica no Brasil, por meio de conteúdos e também ao facilitar o acesso à rede de apoio existente, potencializando iniciativas reconhecidas.