A revolução no modo de viajar: o nomadismo digital

Que tal deixar a gravata ou o salto alto de lado e começar a trabalhar em alguma praia paradisíaca, com o pé na areia?

Com passagens aéreas cada vez mais baratas, avanço das tecnologias e formas de comunicação instantânea, como as chamadas telefônicas por WhatsApp ou Skype, internet e wi-fi onipresentes e computadores portáteis de alto desempenho mais baratos e acessíveis, deixar o escritório para trás é cada vez mais factível, o que fez esse estilo de vida ganhar até nome: nomadismo digital.

Marcus Lucas, 32, mora em Chiang Mai, na Tailândia, de onde mantém o Libertação Digital, site que orienta quem quer mudar para uma vida igual a sua

Basicamente, trata-se de um modelo em que a pessoa trabalha enquanto viaja (e viaja enquanto trabalha, claro). Para isso, esses nômades exercem funções intimamente ligadas à cultura digital –são eles profissionais de marketing, tecnologia da informação, publicitários, designers e webdesigners, artistas, jornalistas, escritores, consultores, analistas de negócios, entre outros.

Especialistas alertam, porém, que para se tornar um nômade digital é preciso estar minimamente estruturado em sua área de atuação, afinal serão meses ou anos rodando o mundo, com a necessidade premente de pagar as contas no final do mês –embora o modelo pregue uma filosofia com menos amarras, pagar algumas contas é uma atividade inevitável, principalmente a estadia no hotel, hostel, pousada, albergue ou casa do Airbnb em que o viajante estiver.

Muito por conta disso, é comum ver nômades digitais não tão novos, mas também não muito mais velhos. “O nomadismo não é apenas para jovens”, garante Marcus Lucas, 32, um dos nômades digitais brasileiros mais experientes, há cinco anos. Morando em Chiang Mai, na Tailândia, ele mantém o Libertação Digital, site que orienta quem quer mudar para uma vida igual a sua.

Como começar

Vinícius Telles e Patrícia Figueira, do blog Casal Partiu, limitam a permanência a no máximo três meses

O movimento teve um de seus embriões nos Estados Unidos no início dos anos 2000, pelo simples motivo de que a internet na Terra do Tio Sam sempre esteve entre as mais adiantadas do globo –e internet e nomadismo digital caminham lado a lado.

Conforme essa cultura avança, mais pessoas passam a adotá-la. De acordo com apresentações no maior fórum de nômades digitais (Nomad Forum), a grande maioria dos adeptos vem de países como Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e França.

No entanto, o Brasil tem ocupado um espaço cada vez maior. É provável que esteja entre os países com mais adeptos dessa cultura nos próximos anos. Caio Martins, co-fundador da plataforma colaborativa de viajantes Dubbi, sentiu essa procura crescer atualmente. “Viajar não é só passar 30 dias de férias. Hoje, muitas pessoas querem fazer do termo ‘viajante’ uma profissão”, afirma.

A Tailândia é informalmente conhecida como a “capital mundial dos nômades digitais”. Prova disso é que Marcus Lucas diz que há mais seis brasileiros nômades em Chiang Mai, paradisíaca cidade em que mora na Tailândia.

São vários os motivos. Em primeiro lugar, os preços praticados na região são incrivelmente baratos para quem recebe em dólar, euro, libra e até mesmo reais. Segundo, a população é bastante amistosa com estrangeiros. Terceiro, mas não menos importante, as praias paradisíacas presentes aos montes.

Mas nem tudo são vantagens. Um erro comum é associar o nomadismo digital aos aventureiros que largam tudo para fazer uma volta ao mundo. Nômades estão, quase sempre, trabalhando. Podem encaixar uma viagem a lazer em algum momento, mas não é regra. Podem estar de chinelo à beira de uma praia com água de coco na mão, mas o computador no colo certamente indica trabalho.

Mesmo assim, o modelo vale a penas, garantem os nômades. Para Marcos Lucas, só o fato de poder trabalhar em horários mais flexíveis e ter maior mobilidade geográfica, que permite explorar o mundo e novas culturas, já é uma grande vantagem.

É bom entender, porém, que não necessariamente nômades digitais estão sempre mudando de lugar. Não há uma regra. Lugares e datas são muito bem escolhidos e definidos de antemão, por alguns. No caso do Casal Partiu, há um limite de tempo para a permanência, que normalmente é de três meses.

“Mas já mudamos de planos inúmeras vezes, em função de acontecimentos durante a viagem. Se a gente planeja tudo e compra todas as passagens com excessiva antecedência, a gente perde essa flexibilidade”, conta Vinícius Telles, que, com sua mulher Patrícia Figueira, mantém o site, o qual conta a experiência da vida na estrada.

Ele faz software, ela, fotografa casamentos. Ambos viviam em Niterói (RJ), até 2010, em um apartamento enorme que servia de escritório a ambos. Mas não estavam contentes com a vida fixada em um só local e os preços exorbitantes praticados no Brasil.

O videomaker e fotógrafo Vagner Alcantelado e a jornalista Barbara Rocha já estavam na estrada, vivendo como nômades, quando ouviram falar pela primeira vez em nomadismo digital. O casal produz uma série para TV com foco nas suas viagens. O plano é ficar 10 anos nessa vida, mas isso pode durar menos ou mais. “Quem sabe a gente não continue mesmo velhinhos?”, diz Bárbara.

O começo, obviamente, não é fácil. Driblaram várias adversidades até chegar a um modelo de negócios que permitisse permanecer na estrada por tempo indeterminado. “Foi um processo natural de erros e acertos, que gerou ansiedade em vários momentos. Hoje realmente conseguimos trabalhar de qualquer lugar do mundo”, diz Barbara.

Os perrengues acontecem, por maior precaução que possa haver. O maior de todos foi quando a van deles foi arrombada em Christchurch, na Nova Zelândia, e levaram todas as suas roupas e boa parte do equipamento de filmagem.

O desfecho, no entanto, foi positivo: como a história saiu no jornal local, muitas pessoas entraram em contato oferecendo ajuda, inclusive a universidade de cinema local, que se ofereceu para emprestar seu equipamento de filmagem para a continuação do projeto.

E a melhor parte de ser nômade digital? “Poder almoçar num dia com uma família chinesa na Malásia e no outro estar com um grupo de tailandeses em um bar”, afirma Barbara.

Para a escritora Paula Quintão, de apenas 30 anos, tem uma vida movimentada. Com 15 anos já era mãe da Clara. Já passou por dois casamentos. É doutora em ciências do meio ambiente. Já morou em Manaus. Hoje, a menina é sua parceira de aventuras. Em 2015, tirou-a da escola e passou a conhecer o mundo ao lado da menina.

Ela mantém o site com seu nome, em que compartilha suas experiências de vida. E para Paula a maior vantagem do nomadismo digital é ter acabado com as segundas-feiras. “Eu amo acordar na segunda e não ter que correr para bater meu horário de ponto. Ao mesmo tempo amo chegar em casa e ficar trabalhando até a hora que eu quiser. Há momentos que tudo o que desejo é estar ao lado da minha filha, mesmo sendo uma segunda de manhã. E há momentos em que tudo o que eu quero é me dedicar a produzir para o meu trabalho, mesmo sendo uma manhã de segunda”.

Rafael Incao criou um curso focado em ensinar o que é preciso para ser nômade

A nômade Fernanda Neute, do Fêliz com a Vida, tinha um bom emprego, um salário alto, mas largou tudo para adotar esse estilo de vida. Ela diz estar feliz, mas que os dois últimos anos de sua vida foram os mais difíceis. E não vê nenhuma contradição nisso. “Uma confusão que as pessoas fazem com muita frequência é que felicidade é a ausência de sofrimento. Uma coisa não tem nada a ver com a outra”, afirma.

Desde então já morou na Tailândia, Vietnã, Hong Kong, Colômbia, África do Sul, Estados Unidos e visitou outros 20 países.

E para quem acha que nomadismo é turismo, Fernanda mostra na prática que não é bem assim. “Morei na Tailândia por quase 2 meses e morro de vontade de fazer uma viagem de “férias” para lá, pois sinto que não aproveitei como devia”, conta.

O nômade Rafael Incao dava aula de matemática, mas já estava cansado de logaritmos e números complexos. Em uma viagem para a Austrália, percebeu que precisava dar uma guinada em sua vida. Ele já namorava o conceito de nômade digital, e resolveu mudar radicalmente tudo o que fazia.

Desde então, criou um curso focado em ensinar o que é preciso para ser nômade, Academia de Nômades Digitais. Em suas palavras, resumindo, um nômade digital precisa não ter residência fixa e trabalhar usando meios digitais. “Parecem preceitos óbvios, mas muita gente não os aplica”, afirma.

Prós e contras da vida de nômade

segundo o “Casal Partiu”

Prós:

– Diversidade: oportunidade de mudar de ares frequentemente

– Aprendizado: exposição a uma infinidade de situações novas, saindo constantemente da zona de conforto. Na maior parte do tempo, o nômade encontra-se em um país cuja língua não compreende e cuja cultura é bastante diferente.

– Beleza:  há muito lugar bonito nesse mundo e um nômade tem a chance de conhecer muitos deles.

– Pessoas: o nômade faz muitos amigos novos o tempo todo. Eles vêm de lugares com culturas e tradições diferentes, o que permite conversas interessantes e reveladoras.

Contras:

– Apego: todos têm algum tipo de apego. Bens materiais, status, amigos, familiares e por aí vai. O nômade é forçados a viver sem eles. E isso gera ansiedade, angústia e saudade.

– Organização: quem é nômade não se pode dar ao luxo de ser pouco organizado. A diferença entre ser ou não organizado pode ser tão drástica quanto ficar sem ter onde dormir e nada para comer em uma cidade desconhecida de um país cuja língua você não fala uma palavra. Não é divertido. Isso se resolve facilmente com planejamento e organização.

– Desconexão: Você é nômade, mas o resto do mundo, não. Portanto, é bastante difícil conversar sobre a vida nômade com pessoas que têm uma vida “normal”. Essa falta de conexão com elas pode ser mais drástica do que parece e extremamente frustrante. O nômade muitas vezes é visto como uma espécie de “maluco”. É preciso aprender a conviver bem com isso. Nem sempre é fácil.

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