Osvaldinho da Cuíca e a tríade respeito, religiosidade e devoção
Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Vai-Vai. Eis o nome fundado por um grupo de notáveis sambistas no bairro do Bixiga, na Bela Vista. A agremiação, que hoje figura com o maior número de títulos do Grupo Especial do Carnaval paulistano, remonta à década de 1930, quando um grupo de amigos, liderados por Livinho, Benedito Sardinha, Henricão, Fredericão e Seo Loro, decide criar o Cordão Carnavalesco e Esportivo Vae-Vae.
Mas a folia queria crescer, levantar sua bandeira, gritar seu nome e mostrar que tinha seu valor. A fusão da paixão pela festa com a pressão para o encaixe ao então modelo de mercado fez com que Osvaldinho da Cuíca e seus pares tomassem rumos que extravasariam para sempre os moldes regionais dos cordões carnavalescos paulistanos. “Fui um dos artífices do movimento que pretendia a transformação do cordão para Escola de Samba Vai-Vai”, revela Osvaldinho em entrevista exclusiva ao Samba em Rede.
Primeiros passos
- Orquestra de Santo André promove Carnaval Sinfônico
- Ossa apresenta Carnaval Sinfônico neste final de semana
- A folia não acabou! Veja dicas brabas pra prolongar seu rolê de pós-Carnaval
- Hostels pelo Brasil promovem festas de Carnaval; veja programação
O processo de oficialização do Carnaval em São Paulo se concretiza de forma plena e efetiva em 1968, antecedido por diversas frustrações na obtenção de apoio oficial para a celebração.
Líderes carnavalescos como Seu Nenê, Inocêncio Tobias, Madrinha Eunice, Bitucha e Pé Rachado percebem a necessidade de uma associação com uma figura pública reconhecida para convencer o poder público a conceder apoio institucional ao Carnaval paulistano. “Foi por conta da ajuda do Moraes Sarmento, um radialista muito divulgador do samba, que começou uma negociação sólida com o prefeito Faria Lima para a oficialização do Carnaval em São Paulo”, conta Osvaldinho.
A empreitada teve êxito e os líderes carnavalescos, com o apoio de Moraes Sarmento, conseguem a regulamentação do Carnaval de São Paulo, que passou a contar com verba pública para realização dos desfiles. De acordo com o cuiqueiro, o prefeito Faria Lima, que era carioca, foi o responsável pela encomenda de um regulamento para o concurso entre agremiações paulistanas que, além de não considerar os elementos típicos regionais dos grupos carnavalescos, seguiu precisamente o modelo do Carnaval do Rio.
Para Osvaldinho, o resultado desta manobra foi o início a um processo de padronização que se mantém até os dias de hoje, sempre tendo como exemplar as escolas de samba cariocas.
Vai-Vai: de cordão carnavalesco à escola de samba
Em 1972, a convite de Ângelo Fasanelo, fundador do Gaviões da Fiel – bloco à época ainda acoplado ao Vai-Vai -, que Osvaldinho aceitou colaborar no processo de oficialização do então cordão carnavalesco em escola de samba. “O Pé Rachado, que era presidente naquele momento, começou a vacilar; ficava muito tempo fora por conta do trabalho. E me colocaram nessa diretoria provisória do até então cordão.”
Como resultado da manobra de padronização, os principais cordões – Vai-Vai, Camisa Verde-e-Branco e Fio de Ouro – acabaram se tornando escolas de samba. “A resistência foi pouca: o paulistano era muito renegado e tudo foi paulatinamente mudando. Tanto é que só sobraram três”, observa Osvaldinho, sobre o posicionamento dos representantes carnavalescos que, segundo o músico, não foram tão contrários às mudanças.
Muito foi modificado. A figura do baliza – integrante que fazia malabarismos com bastões e abria caminho para o cortejo – seria extinta, o estandarte se transformaria em bandeira, os instrumentos de sopro deixariam de figurar nas baterias, a temática livre não seria mais permitida, dando lugar ao desenvolvimento de um enredo, e a ala de baianas se tornaria obrigatória. “Hoje eu gostaria que as coisas não tivessem mudado tanto, mas naquela época eu não tinha ainda essa consciência e maturidade, eu era um profissional. Pretendíamos o crescimento e não a deturpação.”
Da difusão ao descompasso
Em 1986, é criada a Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) e uma nova fase se inaugura no Carnaval paulistano, com uma gestão unificada em busca da profissionalização das escolas de samba e tratando o Carnaval como um evento mercadológico, num processo similar ao ocorrido no Rio de Janeiro.
“Antigamente nós tínhamos apenas um diretor para coordenar tudo e a bateria era muito menor. Um cordão desfilava com 200 pessoas. O que hoje representa uma ala era o desfile todo de ontem”, relembra Osvaldinho sobre os elementos característicos que acabaram se perdendo.
Segundo Osvaldinho, essa situação só se tornou mais irreversível devido a consolidação do modelo carioca de samba e Carnaval, amparado e mantido pela indústria fonográfica e pelo rádio. “Nós tínhamos esse anseio de também ganhar visibilidade na mídia, de querer conquistar um espaço maior como o Rio de Janeiro. E começamos acatar com essa cultura do samba carioca.” Assim, as manifestações regionais paulistas foram se enfraquecendo, na medida em que as culturas do samba e carnaval do Rio ganhavam força.
O compositor ainda contemporaniza o debate: “Hoje escola de samba é empresa. E a empresa tem que ter essa questão hierárquica e tem que delegar ordens, tem que cumprir as funções, senão troca. É que nem um time de futebol, né?”, ironiza ao descrever o cenário atual das agremiações.
O palpite certo
Apesar das transformações ao longo do tempo, a Escola do Povo não deixa de ter tradição e manter o samba vivo. Para buscar o seu 16° campeonato, a saracura canta Mãe Menininha de Gantois na avenida com o enredo “No Xirê do Anhembi, a Oxum mais Bonita Surgiu… Menininha, Mãe da Bahia – Ialorixá do Brasil”.
Perguntado sobre a escolha temática para o Carnaval 2017, Osvaldinho responde: “Eu gostei muito. É um enredo que tem a ver com a nossa gente e ainda por cima traz essa temática religiosa, que está muito em falta hoje em dia.”
Tempos de esperança?
“Sei que a transformação é inevitável, mas muitas vezes ela pode ser bandida”, reflete Osvaldinho ao temer a banalização dos princípios fundamentais do samba que, segundo ele, são: respeito aos antigos, religiosidade e devoção ao gênero.
Perguntado sobre suas referências, o compositor aponta Seu Henricão e Victor Simon como fontes maiores de inspiração e ensinamento. E recorda, com tristeza, perdas mais recentes de componentes das gerações antigas: “Seo Nenezinho do Vai-Vai, que tinha mais de 90 anos, e a Dona Olímpia, mais antiga ainda, matriarca do Vai-Vai, com quase 100 anos. Foram dois que viveram todo esse o processo de evolução e formação do nosso samba. ”
Para Osvaldinho, o samba é, portanto, fruto de ricas tradições orais de matriz africanas e afro-brasileiras. E sua proteção, como bem imaterial do patrimônio cultural nacional, além de ser um dever de consciência, depende muito do comprometimento das gerações que vêm por aí.