Bernadete, a Tulipa Negra que desabrochou no Carnaval paulistano
Veterana do samba e do Carnaval defende que as “mulheres sejam respeitadas e reconhecidas”
É impossível falar de samba e não assimila-lo a um símbolo da cultura afrodescendente, cuja presença feminina sempre foi marcante. Costurando fantasias, engomando saias, na cozinha ou simplesmente servindo de musas inspiradoras, o matriarcado é um forte traço dessa cultura.
Nas escolas de samba de São Paulo, desde o começo do século 20, tivemos mulheres fortes, como Deolinda Madre, mais conhecida como Madrinha Eunice, fundadora da escola de samba mais antiga ainda em atividade da cidade, a Lavapés, fundada em 1937.
Foi através da contribuição e da luta das mulheres negras que o gênero se disseminou e, hoje, é considerado um bem cultural imaterial da humanidade pela Unesco – uma expressão a ser preservada.
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Por isso, no Mês da Mulher indicamos a história de Bernadete, uma mulher negra que nasceu, cresceu e vive a vida em função do samba.
Maria Bernadete Raimundo ou apenas Bernadete, como era chamada nas avenidas, é protagonista de uma trajetória ímpar no contexto do samba. Fundadora da escola de samba Império Lapeano, a cantora consagrou-se como a primeira mulher a interpretar um samba-enredo na recém-inaugurada passarela do samba do Anhembi, em 1991.
Conhecida como a Tulipa Negra do Samba, a paulistana emplacou sucessos como “Farsa do Amor” e “Jogo da Vida”, conviveu com nomes como Armando da Mangueira, Walter Guariglio e Royce do Cavaco, e ainda quebrou muitos estigmas ao tornar-se a primeira mulher a assumir o cargo de diretora da ala de compositores da Peruche, em 2012.
Passados 44 anos de avenida e 26 de carreira solo, Bernadete tem muita história para contar sobre a sua trajetória e sobre o samba, que conhece desde que se entende por gente. Sua obra e caminhada reafirmam a importância da música popular e das manifestações afro-brasileiras na constituição da nossa cultura.
Origem
Nascida no Tatuapé e criada na Lapa, filha de um violonista que convidava os amigos para encontros musicais à base de muito choro e samba, Bernadete se apaixonou pela música ainda na infância. “Tenho certeza de que meu pai foi um dos maiores motivos para eu estar cantando hoje”, conta em entrevista exclusiva ao Samba em Rede.
O desenvolvimento musical aconteceu quando ao integrava um grupo com o irmão mais velho, o chamado Sexta-Feira. Anos depois, em época de Carnaval, reunia-se com colegas do bairro para batucar latas e panelas nos encontros do bloco Voz do Morro, que se fundiu à escola de samba Império Lapeano – fundada pela própria Bernadete junto com José Cruz Gonçalves e Seu Divino, em 1974.
Graças ao período em que esteve envolvida com as manifestações carnavalescas do bairro onde residia, Bernadete foi construindo uma carreira sólida dentro do samba.
Lançada e anunciada em rede nacional em 9 de fevereiro de 1991, pela Unidos do Peruche, com o sugestivo enredo “Quem Arrisca, Não Petisca”, de Ideval Anselmo, Carlinhos e Zelão, tudo era novidade para aquela cantora que ainda há pouco trabalhava como secretária da Secretaria do Estado do Turismo e do Esporte (SETESP). Na televisão e nas rádios, a voz de Bernadete despontava como um dos assuntos mais comentados do Carnaval daquele ano.
“A Bernadete é puxadora oficial de samba-enredo do Império Lapeano, uma escola do terceiro grupo. Ela canta simplesmente há 16 anos”, dizia Leci Brandão, comentarista dos desfiles das escolas de samba de São Paulo, pela TV Globo. “Há três meses foi convidada pelo Waltinho, o presidente da Peruche, para cantar por conta da agenda de shows e da gestação da Eliana de Lima. E o pessoal achava que ela só teria o nenê em 17 de fevereiro e, de repente nasceu; está aí a Bernadete estreando na Peruche”, completa.
Deslumbrados como a cantora encarou o microfone e levou a Unidos do Peruche no desfile do grupo especial, Gleides Xavier, Benê Alves e Marquinhos Silveira – grandes comunicadores da folia à época – convidaram a debutante para participar da coletânea da emissora, o LP “Band Brasil 3“, interpretando a música “Farsa do Amor”, de Benê Alves.
Após a estreia em disco em março de 1991, participou do show promovido pela Band no Ginásio do Ibirapuera em maio daquele ano, ocasião que celebrava o aniversário da emissora. “Andanças”, de Paulinho Tapajós, foi escolhida para compor o repertório da cantora. “Você imagina: eu, uma senhora ninguém, só sabiam da minha existência por causa do desfile. Depois de cantar e agradecer a Unidos do Peruche, o público foi ao delírio”, recorda.
Carreira solo
A realização do show resultou em uma decisão: a de seguir carreira solo. Em 1992, além de participar da coletânea “Band Brasil 4″ com a canção ” Tudo Por Uma Criança”, outra de Benê Alves, Bernadete também gravou seu primeiro disco, o LP “Jogo da Vida”, pela Five Star – Chic Show, com composições de Marinheiro e Silva, Dhema e Itamaraka, Kleber Augusto, Enzo Bertoline e Laércio da Costa, Boca Nervosa e Zeca Sereno.
Por tudo que cercava sua vida, Bernadete vivia o melhor momento de sua carreira. Apesar dos discos gravados e figurar como intérprete oficial da Peruche até 1993, a cantora terminou o ano afastada de sua escola do coração. “Em 1994, o enredo falava sobre os orixás, e precisava de uma voz forte, que na época foi o Jamelão. Conhecendo o Jamelão como eu conhecia, ele era bem individualista, e uma novata que nem eu, naquela época, teria chance nenhuma. E eu saí da Peruche”, recorda.
Para ser puxadora de samba, não bastou ter uma grande voz. Se, naquela época, as mulheres sofriam por não poderem cantar e tocar dentro das agremiações, Bernadete provou com a sua atuação pioneira no Carnaval – ainda que interrompida – que as mulheres devem insistir e ocupar todos os espaços.
Sobre o machismo no samba nos dias atuais, ela comenta: “Absolutamente nada mudou. Eu estou no palco, estou no carro de som, mas ninguém pensa em dar o microfone principal para mim – nem para nenhuma outra. É necessário fazer com que as mulheres sejam respeitadas e reconhecidas por todo esse trabalho que vem empreendendo.”
Fora da passarela do samba, realizou diversos shows e recebeu inúmeros convites para participar de várias coletâneas e gravações ao lado de grandes cantores da música popular brasileira. Devido ao seu comprometimento com o samba, Bernadete recebeu convite para retornar à Peruche, em 2005.
Desde então, seu reconhecimento na escola somente cresceu e a sua figura como sambista continua sendo celebrada pelos “perucheanos”. Em 2008, Bernadete tornou-se a primeira mulher a assumir o cargo de diretora da ala de compositores da agremiação. A cantora também atuou na produção da agenda de shows do “Cantinho do Peruche” e hoje ocupa o cargo de diretora da Velha Guarda Musical.
Atualmente, Bernadete está em fase de preparação de seu segundo álbum solo e o repertório inclui apenas compositores periféricos da cidade de São Paulo. O nome do álbum, “O Samba é a Minha Verdade”, é inspirado em uma composição de Robert Giolo, Rodrigo Estabel e Juninho Boemia.
Para além das glórias e conquistas, ouvindo as histórias contadas por Bernadete, nos damos conta da imensa dívida da sociedade com as mulheres do samba, sobretudo com as mulheres negras, parcela da sociedade que sofre até hoje com a discriminação de gênero e com o preconceito racial.
Dona de um valor histórico imensurável, Bernadete é herdeira da tradição paulistana do samba e sua influência é aclamada por gerações de sambistas. A cantora fez da quadra da escola a sua verdadeira casa e dedicou ao samba sua vida, tornando-se uma das principais referências femininas do gênero.
Confira o registro na íntegra:
- Para celebrar o Mês da Mulher, o Samba em Rede presta homenagens diárias a personagens do gênero feminino que nos inspiram. Saiba mais sobre a campanha e leia outros perfis aqui.