Madrinha Eunice: dos batuques de Pirapora à fundação da Lavapés
Madrinha Eunice é considerada uma das grandes matriarcas do samba na capital paulista
No mundo do samba paulista ainda existem histórias pouco difundidas como a de Deolinda Madre, a Madrinha Eunice: grande batalhadora pelo samba e pelas tradições afrodescendentes de São Paulo, fundadora da mais antiga escola em atividade, a mítica Lavapés, e claramente uma mulher à frente de seu tempo.
Pioneira, sua trajetória confunde-se com a história do próprio samba do estado: dos batuques do interior, que a influenciaram desde a infância, às glórias, como a conquista de 19 títulos antes da oficialização do Carnaval paulistano durante a ditadura militar, em 1968.
Em 86 anos de vida, Madrinha Eunice fez de sua casa um verdadeiro abrigo para a escola e dedicou ao samba a sua vida, tornando-se uma das principais referências femininas e precursoras do gênero na capital.
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Nascida em 14 de outubro de 1909 em Piracicaba, interior de São Paulo, Deolinda Madre teve sua iniciação musical no batuque de umbigada, manifestação cultural negra típica da região que até hoje possui remanescentes em outras cidades como Capivari, Tietê e Campinas.
Filha de Mathias Madre, natural de Capivari, e Sebastiana Franco do Amaral, de Piracicaba, Deolinda mudou-se aos 12 anos de idade para a capital paulista. Morou no bairro da Liberdade, também conhecido como Várzea do Glicério, nas ruas Tamandaré, Glória, Galvão Bueno e Barão de Iguape – onde a quadra da Lavapés resistiu por mais de 30 anos.
O apelido Madrinha Eunice surgiu pelo fato de Deolinda ter batizado mais de 40 crianças ao longo de sua vida, fazendo o pseudônimo virar sua assinatura definitiva.
Conheceu seu futuro marido, ainda muito jovem, em Bom Jesus de Pirapora. Ela ia com a família à festa que lá ocorre todos os anos no dia 6 de agosto. Francisco Papa, mais conhecido como Chico Pinga, era italiano e residia em Campinas, além de exímio cavaquinista, também era frequentador assíduo das festas de batuques.
Entre o final da década de 1930 e início da década de 1940, o casal Madrinha Eunice e Chico Pinga frequentava as festas da noite de São João e a Festa de Santa Cruz, e desfilava no “Baianas Paulistas” ou “Baianas Teimosas”, um pequeno bloco da região do Glicério.
Lavapés
Em 1935, Eupídio de Faria fundou a escola de samba Primeira de São Paulo e, dois anos depois, em plena instauração do Estado Novo no Brasil, no dia 9 de fevereiro de 1937, Madrinha Eunice funda a Sociedade Recreativa Beneficente Esportiva Escola de Samba Lavapés, a escola de samba mais antiga ainda em atividade na capital paulista.
A ideia de se criar a escola de samba surgiu a partir de uma visita do casal e José Madre, irmão de Deolinda também conhecido como Zé da Caixa, ao Carnaval carioca, na saudosa Praça Onze. No primeiro ano de desfile as cores da Lavapés eram amarelo e preto, mas no ano seguinte acontece uma alteração por motivos religiosos. Adepta da Quimbanda, Madrinha Eunice decide homenagear o patrono da escola, a entidade Exu Veludo, com as cores vermelho e branco.
A imagem da baiana – símbolo adotado pela Lavapés – representa as grandes matriarcas do samba que promoveram a preservação das tradições afrodescendentes de grupos vindos da Bahia para o Rio de Janeiro e São Paulo e o desenvolvimento do gênero desde então.
A escola foi considerada uma das mais fortes à época e dela participaram vários sambistas que, anos depois, fundariam e integrariam outras agremiações da cidade. Entre eles: Seo Carlão do Peruche (fundador da Unidos do Peruche, em 1956), Silval do Império (fundador da Império do Cambuci, em 1963), José Jambo Filho, o Seu Chiclé (integrantes do Vai-Vai), os radialistas Moraes Sarmento e Evaristo de Carvalho, Mestre Lagrila, Germano Mathias e Dona Maria Esther (porta-voz do Samba de Bumbo de Pirapora).
A partir da oficialização do Carnaval paulistano, em 1968, a produção dos desfiles atingiu custos altíssimos e algumas escolas de samba entraram em crise. Foi o caso da Lavapés, que se manteve até 1975 entre o primeiro e o segundo grupos; mas com os novos parâmetros de avaliação e o falecimento da Madrinha Eunice, em 1995, a escola entrou em declínio.
Passados 81 anos desde sua fundação, a Lavapés persiste sob o comando de Rosemeire Marcondes – neta e afilhada de Madrinha Eunice – mantendo o comprometimento que destaca a agremiação no mundo do samba até hoje. Como Madrinha Eunice costumava dizer, “a Lavapés teve um começo, mas não terá fim”.
A força e importância de Madrinha Eunice foram eternizadas enquanto mulher, negra, sambista e militante do samba que foi e sempre será. Do pioneirismo da fundação da Lavapés às rusgas com o Carnaval moderno, Madrinha Eunice, no papel de sambista, deixou clara a solidez de suas convicções e escolhas, de mulher que privilegia as tradições de sua cultura e de seu povo.
Com informações do Museu de Imagem e Som e do livro “Mães do Samba, Tias Baianas e Tias Quituteiras”, de Maria Aparecida Urbano.
Assista ao documentário “Lavapés: Ancestralidade e Permanência”, idealizado pelo grupo de pesquisa de Performatividades e Pedagogias da Unesp:
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