A ligação entre traumas na infância e doenças mentais na adolescência

Cicatrizes emocionais na infância têm sido apontadas como fator determinante para o surgimento de doenças mentais durante a adolescência

Por Maíra Campos em parceria com Anna Luísa Barbosa (Médica - CRMGO 33271)
20/05/2025 20:00

A infância é um período crucial para o desenvolvimento físico, emocional e cognitivo de qualquer ser humano. Quando marcada por situações traumáticas, essa fase pode deixar marcas profundas e invisíveis, que se manifestam anos depois.

A ligação entre traumas na infância e doenças mentais na adolescência
A ligação entre traumas na infância e doenças mentais na adolescência - iSTOCK/Ridofranz

Essas cicatrizes emocionais, muitas vezes silenciosas, têm sido apontadas como fator determinante para o surgimento de doenças mentais durante a adolescência, conforme revela um estudo robusto conduzido no Brasil em colaboração com pesquisadores do Reino Unido.

Traumas precoces e saúde mental: o que a ciência mostra

Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da USP, em parceria com a Universidade de Bath, revelou que um terço dos diagnósticos de transtornos mentais em adolescentes está relacionado a traumas na infância.

Foram analisados dados de 4.229 adolescentes da Coorte de Nascimentos de Pelotas de 2004, projeto que monitora desde o nascimento os impactos de diferentes fatores na saúde ao longo da vida.

Entre os 15 e 18 anos, os jovens passaram por avaliações psiquiátricas, enquanto o histórico de trauma foi coletado a partir dos relatos de cuidadores até os 11 anos e, posteriormente, também dos próprios adolescentes.

Quais tipos de trauma mais afetam os adolescentes

Os pesquisadores investigaram a exposição a 12 categorias de trauma, incluindo acidentes graves, incêndios, catástrofes naturais, abuso físico ou sexual, violência doméstica e luto parental.

Aos 18 anos, 81,2% dos participantes já haviam passado por pelo menos uma dessas situações traumáticas ao longo da vida.

Essas experiências foram responsáveis por 30,6% dos transtornos psiquiátricos identificados na adolescência, mostrando a força do impacto acumulado dos traumas.

A ligação entre traumas na infância e doenças mentais na adolescência
A ligação entre traumas na infância e doenças mentais na adolescência - iSTOCK/Motortion

Adolescência: fase crítica da saúde mental

Segundo a pediatra Alicia Matijasevich, professora da Faculdade de Medicina da USP, a adolescência é um período especialmente sensível. “Estudos anteriores, realizados em países ricos, já indicavam que a exposição a traumas na infância pode aumentar substancialmente o risco de transtornos mentais ao longo da vida”.

Nesse estágio, o cérebro ainda está se desenvolvendo, e funções como memória, planejamento e controle de impulsos podem ser afetadas por experiências traumáticas precoces.

Para o psiquiatra Elton Kanomata, “a exposição precoce a traumas pode influenciar negativamente na saúde mental na infância e na adolescência, e isso pode aumentar significativamente o risco de desenvolver transtornos mentais ao longo da vida”.

O cenário em países de baixa e média renda

Nos países de renda média e baixa, como o Brasil, o cenário é ainda mais alarmante. Há maior exposição a adversidades e menos recursos de saúde mental disponíveis.

“Essa diferença se deve a múltiplos fatores, incluindo desigualdades socioeconômicas, maior exposição à violência comunitária e doméstica, instabilidade política e acesso limitado a serviços de saúde mental”, explica Matijasevich.

O estigma social, aliado à escassez de diagnósticos e tratamentos, contribui para que os transtornos se agravem e tragam prejuízos na vida adulta.

O tipo de transtorno mais comum entre os jovens

Os transtornos mais frequentes identificados foram os de conduta e oposição, ansiedade e humor. Essas condições comprometem o bem-estar e o desempenho escolar e social.

Enquanto os transtornos de conduta envolvem agressividade e quebra de regras, os de ansiedade são marcados por medos persistentes e reações exageradas a situações cotidianas.

Os transtornos de humor, como depressão e bipolaridade, causam alterações intensas e duradouras no estado emocional, afetando a funcionalidade do jovem.

Como prevenir e identificar sinais de sofrimento mental

Para os especialistas, a prevenção é o caminho mais eficaz. “A associação entre a exposição cumulativa a traumas e o aumento do risco de transtornos psiquiátricos na adolescência sugere que a prevenção e a intervenção precoce podem ter um impacto significativo”, diz Matijasevich.

Kanomata reforça: “O primeiro e mais importante objetivo é o bem-estar. A abordagem preventiva é importante para que as pessoas não cheguem ao adoecimento”.

Entre os sinais de alerta que merecem atenção estão: mudanças bruscas de humor, isolamento, insônia, alterações no apetite e dificuldades escolares ou sociais.

O papel das políticas públicas e da sociedade

A pesquisa, apesar de ter sido feita em Pelotas, RS, reflete um desafio nacional. “Este estudo aponta para desafios compartilhados por toda a população”, comenta Kanomata.

Fatores como violência urbana, negligência familiar, acidentes e acesso desigual à educação e saúde são comuns em várias regiões do país.

Além disso, a distribuição irregular de profissionais de saúde mental dificulta ações preventivas e o tratamento adequado de adolescentes em sofrimento.

O futuro começa na infância

O impacto dos traumas vividos na infância não deve ser subestimado. Tratar e prevenir os efeitos dessas experiências pode mudar o destino de milhões de jovens.

A valorização da saúde mental desde os primeiros anos de vida é essencial para formar adultos mais saudáveis, resilientes e preparados para enfrentar os desafios do mundo.

Investir em políticas públicas, acolhimento e informação é um passo fundamental para romper o ciclo do trauma e garantir um futuro mais equilibrado às próximas gerações.