“A parte mais difícil de ter HIV é viver em uma sociedade tão preconceituosa”

Podcast Preto Positivo: Emer Conatus é o criador e uma das vozes deste canal de informações e vivências de pessoas negras vivendo com HIV

Emer Conatus, 27 anos, mora em São Paulo e trabalha como educador cultural. Atualmente, um dos seus projetos é o Preto Positivo. “É como dizer que existimos e não estamos sozinhos. Uma afirmação coletiva! Gosto de pensar como um aquilombamento”, diz ele.

Quando Emer descobriu ser HIV positivo logo após o Natal de 2018, ele diz ter ficado na fila de espera do SUS durante 3 meses antes de conseguir ter a sua primeira consulta médica. Ainda segundo ele, “Pessoas negras enfrentam mais dificuldades de acesso a qualquer sistema social, como moradia, emprego, educação, transporte, segurança e na saúde não é diferente. Aqui no Brasil a medicação é gratuita pelo SUS, mas enquanto os números de pessoas brancas em tratamento aumentam, entre as pessoas negras o que aumenta são os números de infecções e mortes”.

O que esperar do Podcast Preto Positivo? Segundo a descrição do próprio canal: “Por que os conteúdos sobre HIV+ geralmente são produzidos por pessoas brancas se a maior parte da população brasileira convivendo com o vírus é preta? Além disso, o que se ouve no cotidiano comum sobre HIV/AIDS são ruídos desatualizados e até mal intencionados que ecoam desde os anos 80, carregados com os estigmas e preconceitos daquela época, quando a medicina pouco sabia sobre o desenvolvimento do vírus. Isso mostra que mesmo depois de quase 40 anos, falamos menos dessa epidemia, invisibilizando um grupo social que representa cerca de 866 mil de pessoas vivendo com HIV no país e destas, pessoas pretas morrem 3 vezes mais em decorrência da AIDS que pessoas brancas”.

Leia abaixo a entrevista completa com o Emer.

“Acredito que educação sexual ainda seja tabu porque é mais simples proibir do que educar. Usar o medo como forma de manutenção do controle social.” Emer Conatus
Créditos: Arquivo pessoal
“Acredito que educação sexual ainda seja tabu porque é mais simples proibir do que educar. Usar o medo como forma de manutenção do controle social.” Emer Conatus


HIV Positivo – A descoberta

Tendo informações sobre ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), eu passei a considerar outros meios de prevenção além da camisinha. No início daquele ano, em 2018, eu procurei um médico, interessado em iniciar PrEP, um preventivo anti-HIV, mas passei por uma entrevista e fui orientado a não tomar, pois era recomendado para profissionais do sexo, pessoas que não usavam preservativos ou usuários de drogas injetáveis, o que não era o meu caso. Também ouvia casos sobre efeitos colaterais, então achei melhor esperar. Quando retornei no fim do ano, decidido, foi tarde, o médico me disse que eu não poderia tomar PrEP porque já tinha o vírus HIV. Antes disso, como minha infecção era recente tive de passar por 04 testes em 02 dias até receber o diagnóstico. Isso foi bem cansativo, preparar meu psicológico para cada teste.

Mal terminava o Natal, chegava o Ano Novo, eu desempregado, o aluguel atrasado, minha mãe doente e, de repente, o HIV. Não tinha o que comemorar. Era muita coisa pra equilibrar, eu não sabia o que fazer. Mas a verdade é que no meio desse cenário todo, o vírus acabou ficando como plano de fundo. Eu fiquei na fila de espera pela primeira consulta no SUS por 03 meses, enquanto isso, tinha outras preocupações, coisas mais urgentes como arranjar emprego. Nem tive tempo pra pensar ou sentir as mudanças que estavam acontecendo, sequer consegui chorar, eu precisava colocar dinheiro dentro de casa, outros familiares dependiam de mim. Então apenas continuei tudo como se nada tivesse acontecido, eu não podia parar.

“Geralmente só quem vive com HIV entende como é passar por isso”

Apesar de recente, meu caso era preocupante. Eu estava em estágio de Aids, com a imunidade muito baixa. Mesmo assim, ainda bem que não tive grandes sintomas, outras pessoas no meu lugar precisariam ser internadas, mas eu nunca tive nenhum mal estar.

Geralmente só quem vive com HIV entende como é passar por isso. Mesmo os profissionais de saúde ou as pessoas que mais te amam na maioria das vezes não sabem como lidar com a questão. Não se trata somente de onde conseguir os remédios, iniciar o tratamento e ficar indetectável, essa é a parte fácil. A parte mais difícil de ter HIV é viver em uma sociedade tão preconceituosa. Ainda tratam o diagnóstico de HIV como um atestado de óbito. A OMS aponta que pessoas vivendo com HIV têm chances 100 vezes maiores de cometerem suicídio do que a população mundial. Essas pessoas não se matam por medo do vírus, se matam por medo da sociedade, que nos coloca em condições sub-humanas.

Nada me foi tão eficaz quanto buscar o apoio e informações de pessoas que vivem com HIV. Você percebe que não foi a primeira, não será a última e não é a única pessoa vivendo com o vírus. Tudo se torna muito mais simples quando encontramos outras possibilidades e perspectivas de vida. Eu conheci pessoas incríveis que me inspiraram muito.

Precisamos falar sobre prevenção e também em como viver saudavelmente com o vírus

Acredito que educação sexual ainda seja tabu porque é mais simples proibir do que educar. Usar o medo como forma de manutenção do controle social.

Mesmo quando as escolas ou as famílias falam sobre educação sexual, fazem isso pensando apenas em quem não vive com HIV ou outras ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis). Os discursos giram em torno de “se previna e não pegue”, sem considerar que talvez alguém ali naquela sala de aula ou em casa já tenha o vírus. Falam somente sobre prevenção, não sobre como é possível viver a partir de uma infecção.

Sou educador de arte na rede pública estadual e uma vez presenciei, na coordenação, uma conversa entre duas educadoras de biologia. Sem saber da minha sorologia, uma delas dizia “pegou HIV, acabou com a vida” e a outra, concordava. Eu não soube o que dizer, não disse nada, só fiquei refletindo “É isso que elas pensam de mim, que eu acabei com a minha vida?”, e mais ainda, “É isso que elas estão ensinando para esses jovens?”. E se algum daqueles jovens já tivesse sido diagnosticado? Eles poderiam achar que realmente acabaram com suas vidas, poderiam vir a cometer suicídio. Não consegui reagir de tão chocado. É lamentável e preocupante.

Podcast Preto Positivo “A ideia é naturalizar a pauta entre a gente, trazer vozes de pessoas negras vivendo com HIV contando suas próprias histórias pra informar, encorajar e reunir mais pessoas negras”.
Créditos: Imagem de Divulgação
Podcast Preto Positivo “A ideia é naturalizar a pauta entre a gente, trazer vozes de pessoas negras vivendo com HIV contando suas próprias histórias pra informar, encorajar e reunir mais pessoas negras”.

Pessoas negras vivendo com HIV no Brasil

Pessoas negras enfrentam mais dificuldades de acesso a qualquer sistema social, como moradia, emprego, educação, transporte, segurança e na saúde não é diferente. Aqui no Brasil a medicação é gratuita pelo SUS, mas enquanto os números de pessoas brancas em tratamento aumentam, entre as pessoas negras o que aumenta são os números de infecções e mortes.

Podcast Preto Positivo

O formato podcast é uma mídia nova que tem crescido e se popularizado, onde você pode falar sobre qualquer assunto e notei que nenhuma atração falava precisamente sobre HIV, que é um tema urgente e necessário. Notei também que poucos eram os apresentadores negros.

No ano passado, o Spotify montou um programa chamado Sound Up Brasil para chamamento de novos criadores de conteúdo na plataforma. Eu criei o projeto Preto Positivo e chamei um amigo também ativista, o Raul Nunnes, pra somar comigo.

A ideia é naturalizar a pauta entre a gente, trazer vozes de pessoas negras vivendo com HIV contando suas próprias histórias pra informar, encorajar e reunir mais pessoas negras. É como dizer que existimos e não estamos sozinhos. Uma afirmação coletiva! Gosto de pensar como um aquilombamento.

“Por que os conteúdos sobre HIV+ geralmente são produzidos por pessoas brancas se a maior parte da população brasileira convivendo com o vírus é preta?”

Embora esse termo tenha sido banalizado, vejo que aqui a questão é sobre representatividade. Pessoas brancas sempre foram maioria nas mídias. Ligue a TV e passe pelos canais! Independente de viver com HIV ou não, ainda são poucas as personalidades negras, mesmo que estejamos falando de um país cuja maior população é negra, mais que isso, somos a maior população negra fora do continente africano e a segunda maior do mundo. E vou mais afundo, quando foi que você viu uma pessoa preta vivendo com HIV na TV aberta? A resposta para esta pergunta se repete nas outras mídias. Se você chega em um lugar e não vê pessoas como você ali, acha que esse local não é para você.

5 pessoas negras que eu indico para você seguir

Micaela Cyrino, artista plástica de quem me aproximei quando gravamos juntos lá em casa a série Deu Positivo. Ela participou da exposição Enciclopédia Negra na Pinacoteca. Grande talento, grande potência!
Instagram: @micaelacyrino

Raul Nunnes, diretor de arte, criador do HIV – Hoje Indetectável Vivo, um projeto de acolhimento a pessoas vivendo com HIV desde o diagnóstico até estarem indetectáveis. Ah, meu cúmplice!
Instagram: @raulnunnes

Ézio Rosa, produtor cultural, amigo de uns rolês, inclusive do rolêzinho Bixa Nagô, um festival de cultura urbana que ele idealizou pra dialogar sobre HIV. Conheça!
Instagram: @eziorosa_

Carolina Iara, co-vereadora aqui em SP pela Bancada Feminista, necessária na frente política.
Instagram: @acarolinaiara

Alberto Pereira Jr, apresentador do Trace Trends, programa de cultura afro. Admiro!
Instagram: @albertopereirajr

Minha experiência com o SUS

São Paulo é referência no Brasil e no mundo em tratamento de HIV e Aids pelo SUS, ainda assim, existem burocracias desnecessárias e não atende à demanda. Por exemplo, eu gostaria de me tratar em um posto do CTA aqui perto de casa, mas não tem vaga, não tem médico, então preciso me deslocar para outra unidade mais distante. Um constrangimento aqui, outro ali, por profissionais que precisam de treinamento sobre populações pretas e LGBTQIA+. Mas com alguma paciência você consegue os exames, as consultas e os remédios, inclusive assistente social, dentista, nutricionista e psicólogo, gratuitamente. Você tem direitos, vá atrás deles!

Acolhimento para quem vive com HIV

Já é complicado demais ser diagnosticado com uma infecção sem cura, ninguém precisa dificultar ainda mais esse processo. Às vezes não precisa falar, nem fazer nada, só estar presente e deixar a pessoa de boa na dela.

Você precisa do seu abraço. Se acolha! Seja gentil consigo. E comece o tratamento para viver bem!

Catraca Livre informa – Conheça leis e direitos que protegem pessoas vivendo com HIV ou Aids

“No Brasil, a Lei Federal nº 12.984/2014, define como crimes com pena de reclusão e multa:
– recusar ou segregar pessoas vivendo com HIV ou Aids por parte de creches e instituições de ensino de qualquer grau, sejam públicas ou privadas;
– negar emprego ou trabalho em razão da sorologia,
– exonerar ou demitir por esta razão,
– segregar no ambiente escolar ou de trabalho,
– divulgar a condição sorológica com intuito de ofender a honra da pessoa,
– recusar ou retardar atendimento de saúde.

No âmbito trabalhista, pessoas vivendo com HIV ou Aids podem sacar integralmente o valor do FGTS. Para tanto, a pessoa precisa solicitar um laudo médico devidamente assinado, e comparecer à Caixa Econômica Federal, ou fazer o pedido via aplicativo do FGTS. O valor  presente na conta será disponibilizado dentro de 05 (cinco) dias úteis. Para admissão e demissão no emprego, é vedado o exame obrigatório de HIV, nos termos do artigo 2º da Portaria nº 1246/2010 da Secretaria do Trabalho. No caso de incapacidade temporária para o trabalho, a pessoa segurada do INSS tem direito ao auxílio-doença. E em caso de incapacidade permanente, elas também têm direito de solicitarem aposentadoria por invalidez, sendo necessário se submeter a perícia.

Pessoas vivendo com HIV ou Aids têm direito a isenção do imposto de renda, conforme o artigo 6º da Lei nº 7.713/1988, e também à gratuidade de tratamento e medicação, conforme prevê a Lei Federal nº 9.313/1996.”

Fonte: Felipe Daier, advogado em Direito Antidiscriminatório e coordenador do Núcleo de Acolhimento da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

Produção em parceria com Felippe Canale. Conheça mais do trabalho do jornalista no Instagram e no Twitter.

Por Felippe Canale

Jornalista parceiro da Catraca Livre